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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

IX - A ESCALADA CAPITALISTA

A transformação na maneira de pensar, decorrente de um maior conhecimento, teria sido a causa ou o efeito de uma radical mudança política e social na Europa do século XVIII?  Uma reflexão sobre essa pergunta conduz a uma nova investigação. A História não é uma ciência exata, porquanto na medida que se revelam novos fatos e novos aspectos de um determinado acontecimento um novo contexto se apresenta, transformando sua narrativa. A História é uma ciência baseada em fatos, todavia as narrativas históricas por séculos e séculos se basearam em fatos que envolviam o palco de ação dos governantes segundo seus interesses, deixando relevantes acontecimentos nos bastidores, passando assim a falsa impressão de ser a História, apenas, uma seqüência incansável de sucessivas guerras. A História tradicional raramente revela os reais motivos das ações dos governantes, colocando os historiadores do passado em delicada posição, seja pela cumplicidade destes com seus superiores, seja para dar um falso valor nacionalista e patriótico em suas narrativas. O interesse econômico quando aparece está embutido num discurso de altos ideais, capaz de motivar atos heróicos da maioria ingênua e de promover a união de muitos em uma mesma causa. A cada dia mais se comprova que questão econômica é a causa primeira de todas as guerras e geradora das transformações da sociedade humana, e, também, de maneira dramática é a única razão para a ascensão e queda das civilizações.

O cenário histórico europeu permite a constatação da relevante importância da economia no processo civilizatório humano. O aspecto populacional, por exemplo, é o fator determinante para a precariedade econômica da Europa na baixa Idade Média. Até o século V a Europa tinha uma acomodação populacional dividida entre os povos celtas, germanos e romanos. Os celtas estavam fixados na Gália (França), Galícia (norte da Espanha), na Britannia (Grã-Bretanha) e no vale do rio Pó, enquanto os germanos se fixaram às margens do rio Reno e do Rio Danúbio. Tanto os germanos quanto os celtas estavam submetidos ao Império Romano do Ocidente no inicio do século V, quando uma certa tribo nômade asiática, denominada hunos, atraída pelas riquezas do Império começou o seu movimento de pilhagem invadindo o oeste europeu, atingindo o rio Danúbio no ano de 405. As tribos germânicas em sua maioria se dedicavam à agricultura, seu preparo para defesa não atingia ¼ da população. Na medida que os Hunos avançavam os agricultores germânicos abandonavam suas terras procurando refúgio em locais mais protegidos, num movimento constante de fuga. A invasão huna desintegrou assim a relativa unidade das tribos germanas as espalhou pelos quatro cantos da Europa; godos (divididos em ostrogodos e visigodos), alanos, vândalos, suevos, francos, lombardos, borgúndios, anglos e saxões passaram a ocupar os territórios continentais celtas, forçando uma imigração deste povo para as ilhas da Irlanda e da Britânia .

A fraqueza política-econômica e militar do Império Romano do Ocidente permitiram que o povo mais forte do império se sublevasse, no caso os germanos. Ora, é preciso lembrar que as legiões romanas, nos anos que antecederam Constantino já eram praticamente formadas de germânicos, a grande maioria destes haviam se convertido ao cristianismo, razão relevante para Constantino adotar o cristianismo. Considerando este aspecto seria mais correto dizer que os germanos ocuparam a ausência de poder do Império Romano do Ocidente sobre seus territórios, descartando a idéia tradicional de uma invasão germânica.  

Por conta de novas invasões os germanos lombardos invadiram o nordeste da Itália e tomam Ravenna em 751. Carlos Magno, ao vencer os lombardos em 774, recebeu a coroa de ferro, que o tornou senhor do norte da Itália. Em vista do poder do rei franco, o papado estabeleceu a primeira aliança estratégica com um líder germânico. No dia de Natal de 800, Carlos Magno foi coroado pelo papa em Roma imperador do Ocidente, para glória da famosa dinastia Merovíngia.

 Com a morte de Carlos Magno em 814, segundo o costume franco toda fortuna paterna foi dividida igualmente entre os filhos, tendo por conseqüência a divisão do império carolíngeo. O novo rei franco passou a ter apenas um poder teórico, porquanto os príncipes governavam com autonomia os seus domínios locais, assim como os outros senhores da alta nobreza. Este costume foi a maior causa da interrupção da hegemonia franca sobre a Europa.     

Naquele final do século VIII, as tribos turco-mongólicas búlgaras também vieram ao leste europeu e acabaram por se misturarem com os eslavos do sudeste sem maiores problemas. Os búlgaros se instalam na foz do Danúbio, às margens do Mar Negro, e acabaram submetidos em 972 ao Império Bizantino. O mesmo não se daria com a chegada das tribos dos ugros que ao final do século IX, que após se fixaram no antigo território do reino dos ávaros, tomando o nome de Magiares ameaçaram a Bavária nos primeiros anos do século X, invadindo o território germânico com sua fantástica cavalaria. A despeito da superioridade tática, os ugros acabaram derrotados em 955, mas apesar disto o reino húngaro conseguiu se constituir antes do final daquele século.

Descendente de Carlos Magno, o Duque da Saxônia, Henrique, o Passarinheiro, q fundou a dinastia saxônia na Germânia, também conhecida como Primeiro Reich. Seu filho Otto I, o Grande, o sucedeu em 936, em 951 se tornou rei da Itália, em razão de uma nova aliança estabelecida pelo papado. Otto recebeu a dignidade de paladino da cristandade do papado, e foi sagrado primeiro imperador do Sacro Império Romano Germânico em 962.                                                                     

Na França, o neto de Carlos Magno, Carlos II, o Calvo, se via em apuros com as invasões vikings de 866, foi com o apoio do cunhado, Roberto, o Forte, que conseguiu se manter no poder. Roberto, o Forte, era o Conde de Tours, e também conde de Anjou, ele é o ancestral de todos os Capetos. Seu neto Hugo, o Grande, casado com a irmã de Otto I, o Grande, foi eminência parda dos últimos reis carolíngios, tal influência resultou na ida de seu filho Hugo Capeto ao trono da França, quando o último descendente carolíngeo da casa real francesa faleceu em 986. Fica evidente que a os reinos Europeus desde a sua formação constituíam uma enorme família.   

O impacto do movimento da invasão viking, apesar do barbarismo que acompanhou suas ações, veio dar um novo brilho à civilização européia. Os povos escandinavos que viviam na região nórdica da Noruega e Suécia, e ocuparam a península da Jutlândia (Dinamarca) chamavam a si mesmos de “vikings”, mas na época carolíngia foram chamados pelos europeus continentais de normandos, que quer dizer “homens do norte”. No século VIII os vikings percorriam com seus navios as costas da Europa, do mar Norte ao mar Mediterrâneo, e eram temidos piratas. Organizados em flotilhas de grandes barcos, desembarcaram nos principais rios do reino franco, exigindo polpuda soma para se retirarem. Em 886, sitiaram Paris e só mediante um enorme resgate e a autorização de saquearem a Borgonha e que eles se retiraram o cerco. Após 850, os vikings, sob o nome de varegos, ocuparam a costa européia do Mar Báltico. Construíram pequenos barcos e desceram o rio Dniéper chegaram a Kiev e de lá ao Mar Negro.Em pouco tempo eles se tornaram os intermediários comerciais entre Bizâncio e o Ocidente, entre cristãos e mulçumanos.  Em 911, os normandos conseguiram por um tratado com o rei francês a concessão da região da foz do rio Sena, dando origem ao Ducado da Normandia, e de lá onde os normandos partiram para conquistar a ilha britânica.

A importância dos vikings está no fato de não serem apenas invasores, eles também eram colonizadores, além disso, tinham talento para o comércio. Houve uma crescente demanda dos europeus continentais pelos produtos escandinavos: como o marfim das morsas, couro e peles dos animais árticos e escravos também, porque a escravatura ainda era uma prática de vários povos na Idade Média.  Por conta do comércio escandinavo, vários entrepostos costeiros, chamados “wics”, foram criados na costa norte européia. Outro fato decorrente da invasão viking foi uma mudança na estrutura social, homens livres se submeteram a seus senhores em troca de proteção, agricultores se tornaram servos e o poder militar de lideres locais aumentou grandemente, dando origem a uma nova classe de status, os cavaleiros, que passaram a servir aos nobres. A Europa Ocidental se tornou na metade do século XI uma colcha de retalho, com uma rede de comunidades entrelaçadas de principados, ducados, condados e tantos outros que constituíam os reinos frágeis sempre ameaçados pela divisão interna.

É nesse contexto convulsionado e repleto de uma nova cristandade pouco convencida da autoridade da Igreja de Roma, que o papa francês Urbano II concebe no Concílio de Clermont, em 1095, a idéia de uma peregrinação poderosa destinada a libertar Jerusalém das mãos dos infiéis mulçumanos. Surgem então as tropas armadas de cavaleiros peregrinos das famosas Cruzadas. E lá foi Godofredo de Bouillon, Duque de Lorena, chefiando a primeira Cruzada em 1096, e vira rei de Jerusalém em 1100. É preciso ressaltar que Godofredo de Bouillon e seu irmão Baldwin, ambos foram reis de Jerusalém, eram filhos da irmã de Eduardo, o Confessor, rei anglo-saxão da Inglaterra, o que faz deles algo mais que simples nobres franceses.

O filho de Baldwin, que reinou em Jerusalém como Baldwin II, não tendo herdeiros de linhagem masculina, chamou o neto do primeiro conde de Anjou, Fulk V, para se casar com sua filha Melisende.  Fulk que havia participado da cruzada em 1120 e ficará intimo dos cavaleiros templários tornando-se um dos seus grandes patrocinadores, não exitou nem um minuto frente à perspectiva de ser o novo rei de Jerusalém. Entrou em acordo com o seu antigo desafeto, o rei Henrique I da Inglaterra e fizeram o casamento de seu filho Geoffrey com a filha e herdeira do rei, Maud, que enviuvara sem-filhos de Henrique V, imperador romano-germânico. Fulk transferiu o direito ao titulo de conde de Anjou para o seu filho e partiu para Jerusalém. Em 1129, o tempo de viuvez de Fulk se encerrava ao casar-se com Melisende, herdeira do trono de Jerusalém. Decorrido um ano, nasceu desde casamento Baldwin III e depois viria Amalric I. Assim, Fulk foi rei de Jerusalém, posto que ocupou ao lado de sua esposa até 1143, que após sua morte reinou sozinha com o filho. Assim a descendência de Fulk conseguiu dois tronos; seus dois filhos reinaram em Jerusalém e seu neto subiu ao trono da Inglaterra como Henrique II, em 1154, fundando a dinastia que reuniu as casa francesa dos Capetos (Anjou) à casa da Normandia da Inglaterra. A nova casa real inglesa de Angevin ficou mais conhecida pelo nome de Plantageneta, em referência ao nome da flor amarela usada no emblema, vulgarmente conhecida como giesta (bot. Planta genesta).

A Igreja de Roma contabilizou o lucro das duas primeiras Cruzadas com o papa Inocêncio III, que revelou uma faceta de poderoso governante, dando ao exercício do poder papal um renovado significado. Inocêncio III consagrou o seu novo poder político fazendo de. Roma um Estado e dando-lhe a condição de patrimônio papal. Posteriormente expandiu o território do novo Estado com os Estados Pontifícios, que se estendiam até a costa adriática com importantes cidades como Ferrara, Bolonha, Imola, Ravenna, Ancona e Perugia. A França foi de vital apoio para seu sucesso e a Inglaterra aceitou. Ao mesmo tempo, Inocêncio III elaborou a política que deu supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal, considerando que se os reis europeus recebiam seu poder de Deus, logicamente deveriam ser submissos ao representante de Deus na Terra, o Papa.

Os imperadores do Sacro Império Germânico não gostaram do perfil papal de Inocêncio III, não abandonando a idéia de fazer uma reforma no papado. A disputa acabou por desembocar na luta pelo controle da Itália. Dois partidos se formaram: os guelfos que apoiavam o papa e os gibelinos que apoiavam os imperadores germânicos. As conseqüências no território germânico não foram nada favoráveis. Com a morte do imperador Henrique VI, seu filho e herdeiro Frederico II tinha tenra idade, e ficando órfão de mãe, Inocêncio III se fez guardião do pequeno herdeiro. O que permitiu o papa se opor ao tio do garoto Filipe, o Duque da Suábia, que era apoiado pelos seus parentes gibelinos. Filipe acabou assassinado e os guelfos apoiaram Otto de Brunswick, filho de Henrique, o Leão, Duque da Bavária e da Saxônia e Matilda Plantageneta, irmã de Ricardo Coração de Leão, assim o papa designou Otto IV como novo imperador romano-germânico. A despeito do apoio papal, logo Otto IV investiu contra os Estados Papais e foi derrotado por Filipe Augusto da França, aliado do papa Inocêncio III. Assim mais um imperador romano-germânico acabou excomungado e deposto. Então, finalmente, Frederico II foi eleito rei da Germânia, e com apoio de Inocêncio foi coroado rei dos Romanos em 1215, sendo o novo imperador em 1220.

Todavia, Deus parece ter sempre seus próprios desígnios. O novo imperador romano-germânico não tardou a reiniciar a luta pela conquista dos Estados Pontifícios e foi naturalmente excomungado. Frederico II era ardiloso, casou-se com a herdeira do reino de Jerusalém (1225), e logo se embrenhou numa Cruzada, não como guerreiro, porquanto era excomungado, mas como diplomata. Foi tão bom diplomata que negociou com os mulçumanos um tratado que lhe daria a posse de Jerusalém por dez anos, foi coroado rei de Jerusalém com sua esposa, em 1229. Mas, seu filho, Conrado, ao nascer o deixou viúvo, então seu filho se tornou o legitimo pretendente ao trono. Como tinha severa oposição política em Jerusalém, Frederico II constituiu como seu vice-rei John de Ibelin, Lorde de Beirut, filho do cruzado Balian de Ibelin. Jerusalém foi perdida para os mulçumanos em 1244 e passadas algumas décadas e o reino de Jerusalém teria seu fim, apesar disto o titulo de rei de Jerusalém sobreviveu às reviravoltas históricas, sendo atualmente reclamado por Juan Carlos, rei da Espanha. 

As Cruzadas, como visto, atenderam ao objetivo do papado de reunir os relutantes reis cristãos europeus em torno de um objetivo comum, que ao mesmo tempo fortalecesse o poder o combalido poder da Igreja de Roma e contribui enormemente para fortalecer o poder papal. Mas, ainda, não era poder suficiente. Com base na ameaça da heresia para a cristandade, em 1233 foi estabelecida a Inquisição, que ampliou o poder papal às alturas. É exatamente esta ampliação do poder pontifício sobre os reinos europeus que conquistou inimigos declarados ou ocultos à Igreja de Roma, para os quais as idéias luteranas foram mais que bem-vindas.

É neste cenário conturbado das Cruzadas que desponta um tempo de desenvolvimento econômico europeu promovido por Henrique I, Conde de Champagne, o qual recebeu a justa alcunha de “o Liberal”. Uma rede de influência poderosa assomada a situação geográfica privilegiada deram ao Conde de Champagne as condições perfeitas para desenvolver o primeiro foco da economia capitalista da Idade Média: as feiras de Champagne. Com sabedoria o Conde de Champagne organizou a parte administrativa de seu condado de maneira eficiente, que lhe permitiu exercer um governo pacifico sobre a pequena nobreza, que o ajudava a manter a segurança do condado. Ele reuniu em torno de si dois mil vassalos, o que por si só já o tornava um nobre poderoso na região.

Os relatos históricos nos levam a pensar que as feiras de Champagne foi um fenômeno de atividade econômica totalmente espontânea, o que não foi verdade. Foi, sim, um evento econômico muito bem organizado e devidamente planejado e administrado pelo Conde de Champagne e sua rede. Henrique em sendo neto da filha do rei da Inglaterra, irmão de outro e casado com a filha do rei França de quem a irmã é esposa, não é um sujeito qualquer, tem um vasto poder atrás de sua pessoa, um poder que fez passar as feiras de Champagne para História.  

O casamento do Conde de Champagne no ano de 1164 com Maria, filha mais velha de Eleanor de Aquitânia com Luís VII da França, de certo deu ainda mais brilho as Feiras de Champagne, além de poder contar também com os favores do rei da Inglaterra, segundo marido de Eleanor de Aquitânia, e que era também duque da Normandia. Se não houvesse esta rede de influência não seria possível o sucesso das feiras de Champagne. Tal rede dava ao condado de Henrique I condições privilegiadas, que ofereciam aos mercadores um campo profícuo aos negócios, algo raro em uma Europa sempre sacudida pelas disputas familiares da nobreza. Para Champagne vinham mercadorias de todas as partes; lã, linho, peles e roupas do norte, especiarias, seda, drogas e muito mais, se negociava as safras agrícolas e animais, as produções artesanais de todos os tipos. Em vista do sucesso das feiras de Champagne, o Conde Henrique I deu maiores prerrogativas e extendeu a liberdade às cidades, o que era impensável até então.

By Bia Botana

As feiras de Champagne podem ser consideradas a primeira manifestação da economia capitalista no Ocidente. Por conta da necessidade de cambio entre as moedas mesas de câmbio começaram a fazer parte das feiras, a necessidade também fez surgir as cartas de crédito e de pagamento futuro, porquanto não era possível carregar-se um volume muito grande de dinheiro de um lado para outro do continente europeu. Entre aqueles que lidavam com a atividade financeira estavam os judeus, os quais podiam emprestar dinheiro a juros, e os italianos que não podiam emprestar dinheiro a juros por proibição da Igreja de Roma, e no meio dos dois estavam os cavaleiros templários, que criaram outras maneiras de empréstimo: como a cobrança de taxa de risco, o seguro de perda e o empréstimo por produção, método que deu origem a um nascente sistema bancário. É preciso não esquecer da intima ligação da Ordem dos Templários com os Plantagenetas e destes com o Conde de Champagne, todos pertencentes à mesma rede de influência.


 
1. Londres  2. Paris  3. Genova  4. Bruges  5. Amsterdã  6. Colônia  7. Augsburgo  8. Basiléia  9. Veneza 10.  Florença  11.  Roma  12.  Lübeck  13. Brunswick  14. Nurembergue 15.  Constantinopla 16.  Acre     !7.  Riga  18. Kiev 19. Novgorod. 
Rotas Terrestres e Rotas Marítimas. 
    
Henrique, o Leão, Duque da Saxônia e da Bavária também logo se ligaria à poderosa rede de influência do Conde de Champagne. Em 1156, Henrique era detentor de um dos mais vastos territórios da Europa continental: a fronteira ao Norte abrangia as costas marítimas do mar Norte e do mar Bálticos, fazendo fronteira com península da Jutlândia (Dinamarca); ao Sul a fronteira alpina italiana; a Leste o reino da Boemia e a Oeste o ducado de Lorena, a Alsácia e a Borgonha. O mais estratégico era a situação geográfica do seu território, o qual cortava o continente de norte a sul e era passagem para o leste das terras costeiras do mar Báltico, onde os vikings varegos haviam estabelecido uma rota comercial pelo rio Dieper, passando por Novgorod, Kiev e chegava-se a Constantinopla, as mercadorias vindas de Constantinopla eram comercializadas pela rota marítima do Báltico ao mar Norte. Com o desenvolvimento comercial trazido pelas feiras de Champagne, duas rotas comerciais foram implementadas; Uma vinha da região mediterrânea da cidade de Arles e subia o rio Rodano até atingir a nascente do rio Sena, seguindo até a foz no canal da Mancha no território do Ducado da Normandia. Outra vinha da cidade de Pavia na Lombardia, atravessava a passagem alpina do passo Grande São Bernardo, chegando a Genebra o caminho se bifurcava ou se ia para Paris ou pegava-se o caminho pelo rio Reno até o canal da Mancha, passando-se pelo território do ducado de Lorena, fronteiriço com o ducado da Saxônia. Após a morte do duque de Lorena, Godofredo de Bouillon, em 1100, o ducado de Lorena fora dividido em ducado da Alta Lorena, na região da Alsácia, e no ducado da Baixa Lorena, que corresponde à região nos dias atuais à Bélgica e Holanda, e em 1192 a Baixa Lorena adotou o nome de ducado de Brabant, que junto com o ducado de Flandres ocuparia relevante importância comercial.

Toda esta questão geográfica será determinante para o desenvolvimento comercial que passa a ocorrer no norte da Europa a partir das feiras de Champagne. Em pouco tempo, na costa do condado de Flandres, região fronteiriça da Baixa Lorena, a cidade portuária de Bruges adquiriu grande importância econômica. Bruges anteriormente fora muito utilizada pelos normandos, porquanto além de ter um porto muito bem protegido era também bem próximo da costa inglesa. O crescente interesse comercial da Inglaterra com pela região contou para o casamento de William, o Conquistador, com Matilda de Flandres, pelo mesmo motivo o filho deles Henrique I da Inglaterra se casou em segundas núpcias com Adela, filha do duque da Baixa Lorena em 1121, todavia a união foi sem filhos, não produzindo o efeito desejado. Mas outra ligação se mostraria vantajosa, o casamento no ano de 1158 de Henrique, o Leão, com a pequenina Matilda (1156-1189), filha de Henrique II da Inglaterra e Eleanor da Aquitânia, irmã de Ricardo Coração de Leão. Após o acordo matrimonial o duque da Saxônia fundou a cidade portuária de Lübeck. Este ato o marcou do inicio das atividades de uma poderosa rede de influência comercial européia, que recebeu o nome de Liga Hanseática ou Liga Hanse.

A Liga Hanseática associava as cidades de importância comercial que estavam localizadas nas rotas comerciais setentrionais, as cidades da liga gozavam de privilégios que lhe davam meios de atuação poderosos, como as franquias comerciais, que viriam a se irradiar da Inglaterra até a Rússia. A sociedade também trabalhava para conseguir privilégios para os seus membros. A História apresenta um curioso exemplo da atuação da rede, ao descrever como um mercador de Colônia tentou convencer Henrique II da Inglaterra, do quanto lucraria com os direitos de privilégios nos negócios em 1157. É difícil acreditar que Henrique II precisasse ser convencido disto, todavia não se pode desconsiderar a possibilidade de ter sido este desconhecido mercador o responsável por ter mostrado ao rei o quanto seria lucrativo o casamento de uma de suas filhas com o duque da Saxônia e da Bavária.

Quis o destino que os interesses ulteriores ingleses fossem contrariados pelos seus adversários do momento. A prosperidade da Saxônia e da Bavária chamara a atenção do imperador romano-germânico, que não tinha interesse no crescimento do poder dos ducados da Saxônia e da Bavária. Em 1182, após ardis legais justificaram que Frederico I Barba Roxa entrasse com as tropas adentro da Bavária e da Saxônia e não restou outra saída ao duque da Saxônia além de fugir para a casa do sogro com sua família. Ele tentou retornar para uma reconquista em 1185, mas voltou a se exilar na Inglaterra em 1188, no ano seguinte morreram sua esposa Matilda e seu protetor o rei Henrique II. Naquele mesmo ano, Henrique, o Leão, aproveita a ausência de Barbarossa, que fora o primeiro a partir para a 3ª Cruzada, e consegue reconquistar ao menos a sua amada cidade de Brunswick, que era a capital do seu ducado. Sem maiores sucessos em sua empreitada, Henrique, o Leão, apenas como duque de Brunswick veio a falecer em 1192. Mas, sua rede de influência sairia fortalecida, sua filha Gertrude da Baviera, era casada com o rei Canuto IV da Dinamarca, dos quatro filhos que teve com Matilde só dois estavam vivos: Henrique I Palatine, Conde de Rhein até 1227 e Otto, que veio a ser Otto IV, imperador romano-germânico em 1209, o favoreceu amplamente a Liga Hanseática.

Todo esse novo contexto do mercado comercial europeu ainda sofreria mais mudanças com a ampliação da influência da República de Veneza, que deu origem a mais uma rede de influência comandada pelos venezianos e posteriormente pelos florentinos, que traria novos aspectos à economia e também às relações comerciais, estabelecendo novas bases para o processo econômico europeu.

 Esta mudança econômica na Europa traria também uma profunda mudança cultural, porquanto na medida em que a população européia enriquecia e abandonava seu estado precário de pobreza perene, tendo acesso cada vez mais a bens materiais, adquiria também mais conhecimento intelectual, capaz de alargar os horizontes e fazer surtir uma consciência mais profunda dos europeus em relação ao mundo, os levando ao questionamento da ordem estabelecida, um questionamento que só seria bem-vindo se viesse de encontro aos interesses da nascente classe capitalista, que menos hipócrita que a classe eclesiástica, deixaria claro que se encarregaria de financiar as novas idéias, desde que estas dessem vantajosos lucros. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

VIII - A LIBERDADE DE PENSAMENTO




                                                   
Na Europa oprimida pela Inquisição a ousadia de pensar por si mesmo poderia ser um crime punido com a morte. O primeiro que ousou tal feito foi Leonardo da Vinci (1452-1519), mas suas dádivas artísticas se sobrepuseram aos méritos de seus estudos tecnológicos e científicos. O segundo foi Martinho Lutero (1483-1546), que abalou os alicerces da toda-poderosa Igreja de Roma. O terceiro foi Nicolau Copérnico (1473-1543), contudo como bispo católico polonês tinha temor de publicar suas teorias em pleno movimento da Reforma, e só alguns meses antes de seu falecimento é que foi publicada sua obra mais célebre “Das revoluções dos mundos celestes”, onde desmistifica a Terra como centro do Universo a favor do heliocentrismo, em oposição às doutrinas eclesiásticas de Roma. Então, para dar continuidade ao pensamento de Copérnico vieram mais três pensadores: Giordano Bruno, Galileu Galilei e Johannes Kepler.

Giordano Bruno (1548-1600) chegou a ser padre dominicano em Nápoles, mas influenciado pelo copernismo e pelos recém descobertos textos de Platão resolveu abandonar a ordem dominicana, assim como Roma, para poder pensar livremente e fugir da atenção da Inquisição indo para Genebra, no ano de 1576. Lá se tornou calvinista, mas acabou excomungado por defender as idéias de Copérnico e foi obrigado a ir para a França, a fama de sua arte mnemônica que lhe permitia uma prodigiosa memória chegou ao rei da França e até 1576 contou com a proteção de Henrique III. Foi com uma carta de recomendação de Henrique III que ele aportou na Inglaterra em 1583, chegando ser professor em Oxford, mas o fato de ser italiano, ex-padre dominicano e apadrinhado pelo rei da França foi considerado uma ofensa em plena era elisabetana, e tal posição lhe foi negada tanto lá como em qualquer outro lugar da Inglaterra. Em seu livro “Giordano Bruno and the Embassy Affair” (Yale UP, 2002), o pesquisador John Bossy revela que Giordano Bruno foi também agente de Francis Walsingham, o chefe do serviço secreto elisabetano, com o codinome de “Henry Fagot” dentro da embaixada francesa, durante o período que permaneceu na Inglaterra.

Em 1585 atravessou o Canal da Mancha e após uma breve estadia na França seguiu para o Sacro Império Romano, onde recebeu a proteção financeira do imperador habsburgo Rodolfo II, o que permitiu que morasse em Praga e depois em Frankfurt. Acabou convertido ao luteranismo, mas também foi excomungado pelos luteranos por suas idéias. Um convite lhe chaga para ir à Veneza, era de um tal de Zuane Mocenigo que desejava aprender a sua arte mnemônica e que o atrai acenando com a oportunidade dele ocupar uma cátedra na Universidade de Pádua.

 Giordano Bruno ficou deveras tentado e considerou que talvez com a morte do papa conservador Sexto V a Inquisição se tornasse enfraquecida e decidiu que deveria tentar a possibilidade de ensinar em Pádua, contudo ao chegar lá no ano de 1591 encontrou Galileu Galilei na cátedra que lhe havia sido prometida. Desiludido retornou a Veneza, onde se dedicou a dar aulas de memória a Zuane Mocenigo, o qual não conseguindo aprender nada por incompetência se enfureceu com Giordano Bruno, o qual já estando em vias de deixar Veneza foi preso pela Inquisição, por conta de uma denuncia de Mocenigo, em 1592. Transferido em 1593 para o Castelo Sant’Angelo, em Roma, tentou por seis anos ter uma entrevista com o papa na esperança de uma retratação parcial sem sucesso, ao fim seu inquisidor impôs uma total retratação, onde ele teria que negar tudo o que havia dito até então, Giordano Bruno se negou e em conseqüência foi condenado por heresia a morte pela fogueira. Seus juízes em demonstração de misericórdia mandaram amarrar uma bolsa com pólvora em seu pescoço para que morresse mais rápido, mas antes ordenaram que a sua língua fosse pregada ao maxilar para que não pudesse falar. Giordano Bruno morreu em 08 de janeiro de 1600 com o primeiro mártir da ciência e do livre pensamento da era Moderna.    

O que foi que Giordano Bruno disse para merecer tal castigo? Nada que não seja nos dias de hoje de conhecimento universal, tal como: A Terra gira em torno de si mesma numa rotação diurna, o céu é uma ilusão causada pela rotação da Terra sobre seu eixo. O Universo é infinito. As estrelas são iguais ao Sol e possuem seus próprios planetas. A Terra é apenas mais um astro no céu, assim como o Sol. Giordano Bruno não era um astrônomo como Copérnico, mas pensava como um astrônomo e refletia sobre o papel de Deus em relação a estes novos conceitos e acreditava que Deus não tem uma relação particular com uma parte do infinito Universo mais do que qualquer outra. Para ele Deus é emanante, é transcendental, ação elementar e primeira causa de todo Universo. Foi por esse pensamento de Deus principalmente que foi condenado, Giordano Bruno desmistificava o próprio ser humano como razão de Deus ter criado todas as coisas em razão dele, tirava a condição especial e divina humana. Deus não estaria em um lugar propriamente, Ele estaria em tudo. Haveria algo mais herege para a época?

Galileu Galilei (1564-1642) por sua vez pode ser considerado o primeiro cientista da História, em razão de seu amor pela ciência também foi perseguido pela Inquisição. Como Giordano Bruno também se tornou adepto do copernismo. No ano de 1588 passando por problemas financeiros não pode continuar seus estudos na Universidade de Pisa, mas tal era o seu talento que chamou a atenção do Grão Duque de Toscana Ferdinando I de Medici, que o indicou como professor de Matemática nesta Universidade. Logo foi convidado para ser professor de geometria, mecânica e astronomia na Universidade de Pádua, ocupando a cátedra tão desejada por Giordano Bruno, e ali permaneceu até um ano após a morte de seu benfeitor Ferdinando I de Medici, em 1609.

Galileu foi o primeiro a empregar experiências com analise matemática dos resultados, estabelecendo uma comparação quantitativa em lugar da mera dedução baseada na observação. Defendia a separação da ciência da filosofia e da religião, única maneira a seu ver que permitia o desenvolvimento do conhecimento ciêntifico. Em 1608 o primeiro telescópio foi inventado nas Províncias Unidas (Holanda) e Galileu construiu o seu próprio telescópio em 1609, o qual tentou comercializar com os mercadores venezianos sem muito sucesso. Mas, foi com o uso de seu telescópio que descobriu Júpiter com suas maiores luas, Netuno e descreveu a Lua com suas montanhas e crateras pela primeira vez. Seu interesse também seria despertado pelo micro-universo, e construiu o primeiro microscópio em 1610, vindo a aperfeiçoá-lo em 1623. Sua contribuição para o inicio da pesquisa cientifica foi inestimável, como por exemplo, ao contrariar a teoria aristotélica de que os objetos pesados caiam mais rápido que os leves, ao comprovar através da experiência de dois sacos com pesos diferentes jogados do alto da Torre de Pisa, que a velocidade da queda é independente do peso da massa.

Em 1597, em uma carta a Johannes Kepler, quando este ainda era professor de matemática e astronomia numa escola protestante em Graz, na Áustria, Galileu afirmou seu acordo com o copernismo, e mencionou o medo de perseguição caso falasse disso em publico. Mas, apesar de sua prudência o policiamento ideológico da Inquisição o atingiria mais dia menos dia.

Foi para a viúva de Ferdinando, Cristina de Lorena, cuja mãe Claudia era filha de Francisco I da França e Catarina de Medici, que Galileu escreveu uma longa carta em 1613 a fim de esclarecer a relação entre a ciência e as Escrituras no que se referia a rotação da Terra, em 1615 ele revisou a carta e expandiu suas explicações tomando a forma final da obra que ficou conhecida como Carta a Grande Duquesa Cristina, também conhecida como Carta Sobre as Manchas Solares. Este trabalho circulou em forma manuscrita e só surgiu impresso em latim e italiano em Strasbourg, cidade livre do Sacro Império Germânico, em 1636. 

A sabedoria de Galileu se fez mias notória após a Carta, transcendendo o meio acadêmico e provocando a atenção do clero, pois até então o desenvolvimento intelectual estivera intimamente ligado à autoridade eclesiástica. Galileu inaugurou a figura do sábio leigo independente da influência religiosa. Por outro lado há que se considerar outro aspecto, que é o surgimento da autoridade ciêntifica em confronto com a autoridade religiosa em vigor naquela época. Contudo, a perseguição a Galileu teve inicio por algo bem mais prosaico e tão incorporado a natureza humana: a inveja. Foi por pura inveja que o seu serviçal o denunciou por contrariar em alta voz as Escrituras a um padre de Pisa, que se sentindo insultado pela inteligência de Galileu já vociferava contra as idéias de Galileu no púlpito durante seus sermões. A Inquisição dava poder a qualquer um fazer denúncias arbitrárias contra qualquer pessoa sem averiguar a veracidade das informações recebidas. Foi assim que Galileu foi parar nas mãos dos inquisidores pela primeira vez no ano de 1616, que o proibiu de ensinar de qualquer maneira a teoria heliocêntrica de Copérnico. 

Enquanto Galileu se via obrigado ao silêncio, Johannes Kepler se beneficiava da posição de matemático imperial adquirida desde 1599, quando foi auxiliado na obtenção do cargo pelo recém chegado à corte do Sacro Império, o astrônomo Tycho Brahe, que pertencia à nobreza dinamarquesa e era amigo do imperador Rodolfo II Habsburgo. O imperador tinha profundo interesse nas ciências ocultas e era patrono dos alquimistas, o que o levou a estabelecer a liberdade religiosa no Sacro Império Germânico, visando apaziguar o crescente conflito entre os católicos e protestantes. Tycho, apesar de defender uma teoria geocentrista por ele elaborada a fim a de atender os conceitos católicos, acabou por se tornar assistente de Kepler, que defendia o copernismo. Tycho morreu de maneira misteriosa após um banquete em 1601. Por sua vez, Kepler ganhou cada vez mais prestigio junto a Rodolfo II Habsburgo, não tanto pelo seu conhecimento astronômico, mas sim através de suas previsões astrológicas.

Após a morte do excêntrico imperador em 1612, Kepler publicou uma obra sobre a teoria de Copérnico em três partes entre 1618 e 1622, num momento em que a liberdade religiosa já se tornara passado, porquanto o novo imperador era ferrenho inimigo dos protestantes, não exatamente por motivos religiosos, mas porque representavam uma ameaça à casa imperial dos Habsburgos. Tenha sido por coincidência circunstancial ou não, foi em 1620 que a mãe de Kepler foi levada à prisão acusada de ser bruxa, onde foi torturada e permaneceu aprisionada por quatorze meses, por que se recusar a confessar os crimes que lhe acusavam. Correndo o risco de também ser preso, Kepler intercedeu corajosamente em favor da mãe junto ao Imperador Ferdinando II Habsburgo, que graças à recente vitória sobre a facção protestante liderada por Frederico V, Eleitor Palatino, interferiu para que a acusação de bruxaria da mãe de Kepler fosse retirada. 

Kepler faleceu em 1630 deixando ao mundo como herança muito da sua sabedoria e legou um pensamento, que poderia ser seu epitáfio: “Eu meramente pensei os pensamentos de Deus após ele ter pensado. Visto que nós astrônomos somos sacerdotes do Altíssimo Deus com respeito ao livro da Natureza, isto nos favorece a sermos pensativos, não para a glória de nossas mentes, acima de tudo, para a glória de Deus”.  

 A despeito da vigilância da Inquisição, Galileu conseguira prosperar e ter entre suas relações representantes das iminentes famílias toscanas e, sobretudo, das poderosas famílias de Florença. Foram exatamente estas preciosas ligações que lhe iriam salvar de um fim desastroso como o de Giordano Bruno. O ano de 1623 lhe seria extremamente propicio, porquanto um de seus amigos próximos, o proeminente florentino Maffeo Barberini, se tornara o papa Urbano VIII. O novo papa ignorou a decisão anterior do Santo Oficio e permitiu que Galileu escrevesse sobre as suas idéias, com a ressalva que não fizesse uma clara defesa da teoria de Copérnico. Galileu retirou-se para sua vila em Arcetri, apenas a três quilômetros do centro de Florença, e se dedicou de corpo e alma a escrever aquela que seria a sua maior obra: “Dialogo de Dois Mestres sobre os Sistemas do Mundo”, mais conhecida como “Diálogos”. O livro foi publicado em 1632 com a aprovação dos censores católicos e foi recebido com aplausos pela intelectualidade da época. Apesar disso, ou por causa disso, a ira da Igreja se levantou contra Galileu.

Os afeitos da arte da pena possuem curiosas maneiras de escrever coisas que não podem ser ditas claramente, o papa Urbano VIII, famoso por ser um brilhante escritor, sem dúvida bem o sabia e não deve ter se espantado com a prodigiosa maneira que Galileu expôs as idéias em sua obra, através da argumentação de três personagens: dois intelectuais, um geocentrista e outro heliocentrista, e um advogado neutro, mas muito interessado no debate. A argumentação dos dois intelectuais se dá de tal maneira, que as idéias geocentristas da Igreja de Roma pareçam loucas confrontadas com a racionalidade das idéias heliocentristas, as quais de tão dominantes acabam por convencer ao seu final o neutro advogado. Apesar de dizer que sua obra é uma ficção teórica, apesar de ter recebido a aprovação dos censores católicos para a publicação e apesar de ser amigo próximo do papa, Galileu acabou sendo julgado pela Inquisição.

Em fevereiro de 1633, Galileu chega em Roma para o julgamento, ficando hospedado na casa do Grão Duque de Toscana, Ferdinando II, neto de seu antigo benfeitor, então chefe da poderosa família real florentina Medici que governava a Toscana. O próprio Ferdinando II de Medici o hospedou em seu palácio em Roma e interviu junto ao papa para reconsiderar a acusação contra Galileu, mas o Santo Oficio foi inabalável. Em junho de 1633, após ter sido torturado e ameaçado, Galileu abjurou seu trabalho e se comprometeu a denunciar quem defendesse as mesmas idéias. Apesar de ter concordado com todas as exigências da Inquisição, Galileu foi condenado à prisão domiciliar até o fim da vida em consideração a sua pouca saúde e avançada idade de 69 anos, mas sem direito a visitas, nem de médicos. Em 1638, finalmente recebeu o direito a prisão domiciliar na própria casa em Florença, para onde retornou já cego, mas mesmo assim com o apoio de Ferdinando II de Medici ele continuou ensinando e escrevendo, e morreu em sua casa no ano de 1642. Seu corpo foi enterrado na Igreja Santa Croce, da ordem franciscana, ao lado das tumbas de Dante e Michelangelo. Levaria 359 anos para a Igreja de Roma reconhecer o erro de julgamento cometido contra Galileu Galilei.

O livro “Diálogos” de Galileu foi banido junto com todas as suas obras, que passaram a integrar junto com o livro de Copérnico o Index Librorum Prohibitorum ou Index Expugatorius, a lista dos livros banidos proibidos a leitura aos católicos. O Index foi criado em 1559, pela Sagrada Congregação da Inquisição, atualmente Congregação para Doutrina da Fé. O Index passou a ter sua força relaxada apenas a partir de 1966, até então era praticamente impossível de serem encontrados em paises de supremacia católica os livros constantes no Index, o que representou um atraso cientifico e tecnológico de extrema relevância para estas sociedades. .

Contudo, se os livros de Copérnico e Galileu foram proibidos nos países europeus católicos do século XVII, eles não o foram das Províncias Unidas, a Holanda, que por esta notável tolerância com a liberdade de pensamento em pouco tempo se tornaria o centro intelectual da Europa, onde as novas idéias não só surgiam, mas fervilhariam mais e mais.  

Francis Bacon teve um empregado chamado Thomas Hobbes, o qual tinha uma calorosa correspondência, nem sempre amigável, com Descartes, o qual trocou idéias com Spinoza, que foi visitado por Leibniz, que criticava Locke, apesar de ambos serem amigos de Isaac Newton, o qual foi conhecido por Voltaire, que teve uma discussão com Rousseau, o qual veio a ser hóspede de David Hume. Francis Bacon, Descartes, Spinoza e Leibniz eram rosacruzes. Voltaire se tornou maçom quando visitou a Inglaterra, assim como também o eram Edward Gibbon e Newton, sendo que este último costuma ser apontado como grão-mestre do Priorado do Sião, uma sociedade secreta de pouco credibilidade verídica, todavia ele pode ter feito parte de um grupo maçônico irregular chamado “Sion”, certo é que Isaac Newton foi um dos mais famosos presidentes da Royal Society.

A ligação que existia entre esses famosos pensadores, cujas idéias transformariam o mundo, normalmente não faz parte do estudo curricular, mas deveria fazer, porquanto tal ligação elucida em muito como eles conseguiram divulgar suas idéias. A parte de toda a inteligência que esses homens possuíam, de nada esta lhes serviria se não existissem meios que permitissem não só a divulgação de seus pensamentos, como também a possibilidade de interagir com pessoas que promovessem esta divulgação. Thomas Hobbes alcançou a visibilidade sendo mestre de proeminentes famílias inglesas, que permitiu que ele participasse dos debates filosóficos principalmente em Paris, foi como mestre acompanhou o futuro Charles II da Inglaterra, então Príncipe de Gales, em uma viagem às Províncias Unidas (1647-1648), por ocasião do funeral do pai de William II de Orange casado com a irmã do príncipe de Gales, Maria. Nesta oportunidade Hobbes tomou contato com Descartes, que ali vivia e mantinha amizade, além de uma extensa correspondência, com a tia de Charles, Elisabeth da Boemia (irmã de Charles I). O idealizador do cartesianismo servira no exército de Maurício de Nassau, irmão do pai de William II de Orange, e por isso se tornou muito bem relacionado na Holanda onde viveu por mais de vinte anos, o que lhe permitiu conhecer o holandês Baruch Spinoza, filho de judeus portugueses que imigraram para Amsterdã.
   
Leibniz, por sua vez, apesar de ser mais conhecido como grande matemático e filósofo, era também um notável diplomata alemão, o que o levou a viajar em missões para Paris (1672), a Londres (1673-1676) e a Amsterdã, onde em 1676 visitou Spinoza pouco antes de sua morte (1677). Nesta época Gottfried Leibniz então foi contratado como tutor da menina Sophia Charlotte, filha de Ernest August, duque Brunswich-Lunembrug, casado com Sophia, filha de Elisabeth da Boemia (Stuart) e Frederico V Eleitor Palatino. Sophia Charlotte mesmo depois de se casar com Frederico I da Prússia em 1688 continuou a manter intensa correspondência com o tutor que se tornara seu confidente e amigo, só interrompida quando a morte a acolheu aos 37 anos, em 1705.   Ernest August se tornou em 1692 o Eleitor de Hanover, e em 1714, seu filho George Ludwig de Hanover, subiria ao trono inglês como George I da Inglaterra.

Ora, Leibniz já trabalhava para os hanoverianos, quando John Locke fugido da Inglaterra foi para Amsterdã em 1683, acompanhando seu protetor Lord Asheley, que caíra em desfavor junto a Carlos II e perdera seu cargo de Lord Chancellor. Com a morte de Carlos II, em 1685, o segundo filho de Charles I é levado ao trono, estaria tudo bem se James II não fosse católico e aliado ao rei Luís XIV da França e, além disso, ter produziu um herdeiro com sua nova esposa católica Maria Beatrice de Modena no ano de 1688. A conspiração teve inicio em Amsterdã na linhagem feminina e protestante da casa Stuart, porquanto Maria Stuart era a filha mais velha de James II, e herdeira presuntiva do pai, pela linha protestante, contava ainda a seu favor o fato dela ser casada com seu primo William, o neto de Carlos I, o filho de Maria e William II de Orange.  Maria de Orange era sobrinha de Elisabeth da Boemia. As casas reais Stuart, Orange e Hanover que eram aparentadas se uniram num só bloco contra James II, que não teve outra saída que sair fugido para França. Locke só voltou à Inglaterra após a Revolução Gloriosa, que colocou no trono inglês os pretendentes protestantes da casa de Stuart William III e Maria II no ano de 1689. Leibniz não teria a mesma sorte quando fosse a hora de George Ludwig de Hanover receber a coroa como George I, a gota o impediria de acompanhar o seu senhor em 1714, permanecendo em Hanover, onde morreu.

Newton era a encarnação do cientista moderno, nada mais lhe tomava a atenção, talvez por isso tenha passado de maneira tranqüila aos percalços políticos ingleses de seu tempo, mas mantinha muita correspondência com Leibniz e Locke, o qual viveu para aplaudir a investidura do cargo de presidente da Royal Society do amigo, em 1703. Aos 86 anos de idade Sir Isaac Newton ainda esbanjava sapiência em Londres quando François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, aos seus 32 anos lhe foi apresentado em 1726, aos auspícios da então princesa de Gales Carolina, nora de George I, que se encantara com os dotes poéticos de Voltaire e o introduzira no meio intelectual londrino. Segundo o próprio Voltaire, ele tinha sido preso na Bastilha por conta de um duelo ao final do ano de 1725, ficou preso por quinze dias e foi despachado para a Inglaterra.  Levando em conta que prestara serviço de espionagem ao Regente, Philip II Duque de Orleans, e que após a morte deste passara a servir a Richelieu a partir de 1724, fica difícil acreditar que sua estadia na Inglaterra não tivesse uma segunda intenção, todavia a influência inglesa irá o acompanhar por toda sua vida. E seria por conta de sua relação com a casa de Hanover que viria a ser hóspede de 1751 a 1753 de Frederick II da Prússia, que era filho de Sophia Dorothea de Hanover, sobrinha de George I e neta de Elisabeth da Boemia (Stuart). Por conta de Voltaire que Frederick II ficou afamado por ser homossexual. A maledicência sarcástica publicada nos quatro cantos da Europa menos na Prússia, foi uma resposta de Voltaire às intrigas da corte prussiana. Em conseqüência Frederick II convidou o ilustre escritor a fazer uma visita às suas masmorras.  

Foi em uma de suas missões diplomáticas secretas à Bruxelas, em verdade pura espionagem, que por volta de 1722 Voltaire conheceu o rebelde cidadão de Genebra Jean Jacques Rousseau, e destilou sobre ele também sua crítica venenosa. Rousseau anos depois foi perseguido na França por suas idéias por demais revolucionárias à época e escapou para Inglaterra, em 1766, com o filósofo escocês David Hume, mas tomado de violenta paranóia acabou por romper com o seu anfitrião um ano e pouco depois, e em seus últimos anos de vida ainda guardava ressentimento contra Voltaire, razão pela qual escreveu uma obra intitulada Confissões, para responder a certas acusações lhe foram feitas pelo ferino François-Marie Arouet.

Pode ser desapontante para alguns saberem que os fundadores do pensamento iluminista em sua grande maioria eram patrocinados pela realeza e eram como agregados destes. Os nomes desses homens interessantes  passaram para a História exatamente porque estavam ligados a representantes poderosos da nobreza européia, sobretudo do lado protestante. Se não fosse por isso estariam condenados ao anonimato. Outro aspecto que salta aos olhos é a impressionante influência do ramo protestante casa real anglo-escocesa Stuart, que estabeleceu sua rede de influência com a Holanda, Alemanha e Prússia. Uma rede que se estenderia por décadas e décadas dando à Inglaterra um grandioso poder e que viria a ser uma das principais causas da Primeira Guerra Mundial.

Enquanto o ramo Stuart protestante se proliferava, o ramo católico com James II foi condenado definitivamente ao insucesso. Anteriormente a tentativa de Charles II também fracassara ao se casar em 1662 com a princesa católica de Portugal Catarina de Bragança, como parte do acordo feito em 1640 com o fundador da casa real portuguesa de Bragança, o rei João IV de Portugal, em retribuição ao apoio inglês dado para a restauração da independência da coroa portuguesa da coroa espanhola. Infelizmente o casamento não gerou nenhum herdeiro legitimo, apesar de Charles II ter povoado a Inglaterra com os filhos de suas amantes, para total desconforto de sua esposa, todavia, a despeito disso, ele permaneceu casado com Catarina até o fim de seus dias. Esta foi a segunda vez que a Inglaterra se ligava a Portugal via matrimônio, a vez anterior se deu em 1385, quando a representante da casa real inglesa Lancaster, Filipa de Lancaster, casou-se com João I, filho bastardo de Pedro I, o qual também subira ao trono português com o apoio da Inglaterra. Com o casamento foi fundada a renomada casa real portuguesa de Avis. Por sua vez a casa de Bragança cuja fundação foi patrocinada pelos ingleses permaneceu no poder até 1910, quando um ultimato inglês sobre territórios africanos provocou forte agitação no reino de Portugal, resultando no assassinato do rei e do príncipe herdeiro, e na instauração do regime republicano, obrigando o sucessor Manuel II abandonar o país para se refugiar na Inglaterra, onde viveu até o fim de seus dias. Esta intima ligação entre a coroa da Inglaterra e a coroa de Portugal permitiu uma forte influência inglesa nos caminhos de Portugal e de seus territórios coloniais, que surpreende por ter se fortalecido ainda mais com as linhagens protestantes Stuart-Orange e Stuart-Hanover, configurando uma inegável dependência lusitana da Inglaterra de conseqüências desastrosas para os territórios colônias portugueses, sobretudo para o Brasil.

Como vimos é neste mundo intelectual constituído pela rede de influência dos Stuarts que grandes intelectuais de variadas nacionalidades encontraram meios de subsistência para fazerem aquilo que fazem melhor: pensar. As idéias de Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes e Leibniz foram a razão do grandioso sucesso de Newton nos campos da matemática, física, astronomia e filosofia. Seus estudos alavancaram o desenvolvimento ciêntifico a um patamar de relevada importância para o desenvolvimento tecnológico que permitiria o advento da Revolução Industrial responsável por colocar um termo definitivo no obscurantismo da Idade Medieval. Não se pode negar a relevante importância de René Descartes, a chamada Revolução Cartesiana configurou o esforço intelectual que deu uma estrutura racional e mais apropriada ao exercício do raciocínio humano, seu método foi baseado na lógica precisa, onde a idéia parte do simples para o complexo por dedução através da dúvida metódica. O método cartesiano separou de maneira definitiva a Ciência, o verdadeiro conhecimento comprovável através da experimentação, da confusão da escolástica fundamentada no conhecimento aristotélico ligado de maneira inseparável à teologia. A dúvida angustiada expressa por William Shakespeare através de seu personagem Hamlet, ao dizer em seu solilóquio “Ser ou não ser, eis a questão!”, encontra sua resposta na conclusão óbvia de Descartes: “Cogito ergo sum” ou popularmente conhecida como “Penso, logo existo”.  Na língua inglesa o verbo to be é também corresponde a existir, assim sendo a questão de Hamlet está mais ligada mais a própria existência, e a dúvida que advém desse existir. A lógica de Descartes se impõe na negação do pensamento, porquanto sem o pensar nada, absolutamente nada existe. A valorização dada por Descartes à racionalidade do uso do pensamento humano foi a chave para o verdadeiro conhecimento da natureza das coisas, decantando as idéias de aspectos confusos e pouco claros, colocando ao alcance da mente uma nova concepção do julgamento da verdade baseada no raciocínio dedutivo do real, concreto e comprovável. Voltaire foi um grande divulgador desses novos pensamentos que permearam todas as suas obras. 

De todas as mentes brilhantes mencionadas anteriormente apenas duas não contaram com as benesses da nobreza, também não foram afortunados pelo nascimento, nem ao menos tiveram uma vida que lhes desse algum notabilidade especial, contudo tiveram contatos com elementos da rede de influência dos Stuarts, e acabaram por terem um lugar registrado na História e seus trabalhos ganharam uma divulgação promovida por seus companheiros de jornada filosófica, são eles Baruch Spinoza e Jean-Jacques Rousseau.

“Deus é o mecanismo da natureza do Universo e a Bíblia é uma metáfora, uma maneira alegórica de ensinar a natureza de Deus”, ao dizer isso Spinoza foi excomungado pela sua sinagoga em Amsterdã aos vinte e quatro anos, em 1656. Na juventude conhecera Descartes, apresentado por seu mestre Van den Eden, a partir deste encontro Spinoza foi totalmente influenciado em suas idéias pelos conceitos do pensador francês, aplicando de maneira radical o pensamento cartesiano às suas idéias. Spinoza além de excomungado acabou desterrado como blasfemador contra as Escrituras Sagradas da comunidade judaica de Amsterdã. Passado um ano desse fato sua situação não tinha nada para ser invejada, Spinoza se tornara um sem pátria, sem saúde, sem família, sem religião, era um sem nada da vida. Para subsistir preparava lentes óticas para microscópios, telescópios e lunetas. Apesar de receber convites para ensinar, os recusava em nome da “liberdade de pensamento”, sentia-se incapaz de tolerar qualquer tipo de controle sobre o bem mais precioso que possuía: o raciocínio. Publicou apenas um livro durante sua vida, mesmo assim anonimamente. Breve lhe foi a vida, quando faleceu aos quarenta e quatro anos vitimado pela tuberculose, seu enterro foi a custas da caridade dos amigos. Sua principal obra, a Ética, foi publicada no ano de sua morte em 1677. 

Spinoza passou para a Historia com as alcunhas de o Grandioso Judeu ou o Grandioso Ateu. Ele era um determinista, acreditava que todas as coisas aconteciam através da necessidade. A liberdade advinha da capacidade de saber esta determinação e entender “porque” agir e fazer. Liberdade, segundo Spinoza, não é a possibilidade de dizer “não” ao que acontece conosco, mas a possibilidade de dizer “sim” e entender completamente porque as coisas necessariamente acontecem em determinado sentido. A influência de Descartes se faz mais presente ainda no que diz respeito à valorização da intuição, concebida por Descartes como a luz que pode tornar claro à mente a distinção dos fatos que existem dos que não existem e sendo ela uma forma preciosa de pensamento. Spinoza do estudo da intuição chega à emoção. Ele fez uma crucial distinção entre as emoções, as dividindo em ativas e passivas, as primeiras são racionais e compreensíveis as segundas não. As emoções passivas estariam correlacionadas à intuição. A razão não poderia reprimir totalmente a emoção por este motivo, o que o levou a concluir que uma emoção só poderia ser superada por outra maior e que só com o conhecimento da razão das emoções passivas seria possível as transformar em ativas. Estas idéias de Spinoza sobre as emoções foi a chave das idéias de Sigmund Freud para a psicanálise contemporânea. 

Jean-Jacques Rousseau por sua vez, nasceu em Genebra, perdeu a mãe logo depois de nascer, o pai era um pobre relojoeiro que o estimulou a ler, mas desapareceu quando Rousseau tinha dez anos. Por conta do abandono paterno foi parar nas mãos de um pastor luterano que o introduziu no sofrimento dos castigos físicos, e lá se sabe no que mais. Ele tinha doze anos quando foi trabalhar num armazém, o proprietário também era dado a lhe bater, aos dezesseis era um perdido na vida. Acabou caindo nas graças de uma senhora francesa católica, a qual lhe deu alguma educação intelectual e sexual. Casada e vinte anos mais velha que Rousseau, a tal senhora depois de convertê-lo para o catolicismo fez do belo jovem de vinte anos seu amante, aproximadamente vinte anos depois Rousseau a abandonou de maneira definitiva, consta que ela estava sem dinheiro e tinha um outro amante. Rousseau vai tentar a sorte em Paris em 1741, acabou amigo de Denis Diderot, que era um dos coordenadores da obra que reuniu os mais importantes conhecimentos da época, a famosa “Enciclopédia”, e entre seus 130 colaboradores estava Rousseau, o qual assim conseguiu alguma visibilidade no meio intelectual literário e teatral parisiense. Contudo, ele casou-se com uma costureira iletrada com quem teve cinco filhos e acabou abandonando sem o menor escrúpulo a família num asilo para indigentes alguns anos depois. Rousseau passaria o resto da vida vivendo em dificuldades financeiras, nos anos finais de vida seria tomado de paranóia, que lhe afasta das amizades. Aos 66 anos de idade, estava hospedado há um mês no castelo do marquês de Ermenonville, quando após uma caminhada matinal teve uma hemorragia e morreu.

A morte de Rousseau numa propriedade nobre é no mínimo irônica para quem escreveu na obra que lhe deu fama, o Discurso da Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, nos idos de 1753 para a participação de um concurso na Academia de Dijon, o seguinte: “O primeiro que tendo cercado um pedaço de terra, teve o atrevimento de dizer ‘isso é meu’ e encontrou gente o bastante cândida que acreditasse, foi o fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassínios! Que misérias e horrores teria poupado o gênero humano aquele que, derrubando os muros ou enchendo as valetas tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘ guardai-vos de dar crédito a tal impostor; estareis perdidos se vos esquecerdes de que a terra não tem dono e que seus frutos pertencem a todos”.  Rousseau é o primeiro a criticar frontalmente o status quo sócio-econômico de sua época, leva essa critica a tais limites em 1762, que foi obrigado a abandonar a França acusado de irreligiosidade e subversão, sendo proibida a venda de seus livros e os existentes em solo francês foram queimados.

Rousseau entre outras coisas escreveu que o homem é naturalmente bom, mas que sua bondade foi corrompida pela sociedade, porquanto era necessário retornar à virtude primitiva. Este pensamento era totalmente contrário aos ensinamentos eclesiásticos e escolásticos que defendiam a tese do pecado original, em que o ser humano nasce conspurcado pelo mal e só o através do batismo pode haver uma remissão do pecado original, mas não da maldade em si, a qual permaneceria no ser humano, em razão disso era considerado que o ser humano nascido mau e se tornava virtuosamente bom através da aplicação das normas sociais católicas. Anteriormente, dando continuidade ao debate crítico aberto por Hobbes sobre a relação do homem e sociedade, em que considerou o Estado como um monstro em seu Leviatã (1651), John Locke escreveu seu “Ensaio sobre o entendimento humano” (1687), que foi em verdade uma crítica a Descartes e a sua idéia de que os seres humanos nascem já com algumas idéias formadas, as chamadas idéias natas, e Lock em seu trabalho afirmou justamente o oposto, que o ser humano é um quadro completamente branco ao nascer, uma tabula rasa, a ser preenchida pelas sensações e organizada pela razão, formando assim as idéias. Locke defendeu dessa maneira a idéia que o meio ambiente seria o formador do individuo. Aparentemente as idéias caminharam e evoluíram de Hobbes à Rousseau, ganhando ainda mais forma e conteúdo.

Hobbes em Leviatã tenta estabelecer uma doutrina sobre modernos direitos naturais, fundamentos da sociedade e legitimidade dos governos; considera que só através de um contrato social seria possível uma sociedade pacífica e justa. Locke em sua obra intitulada “O segundo tratado sobre o governo civil” (1690), dá continuidade à defesa da idéia de que a partir do momento em que os seres humanos viviam em sociedade, também possuíam individualmente os chamados direitos naturais, entre os mais importantes seriam: o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Cabia aos governos assegurarem esses direitos, em caso contrário, caberia ao povo o direito à rebelião contra o governo tirânico. Novamente as palavras de Hobbes e Locke foram amplificadas com as idéias de Rousseau, as quais refletiam sua origem das camadas baixas do povo, e como estas pessoas viam o mundo ao qual não pertenciam e ao qual raramente tinham acesso. Rousseau foi a primeira voz ouvida daqueles condenados apenas à obediência que, até então, jamais tinham tido o direito de falar e apenas tinham o direito de silenciar. Segundo Rousseau o homem nasceu livre, mas fora escravizado pela ordem social e busca uma maneira para reverter essa situação em sua obra Contrato Social, com uma proposta inusitada de oposição ao poder estabelecido: “Enquanto um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem; tão logo ele possa sacudir o jugo e sacode, faz ainda melhor; porque, recobrando a liberdade graças ao mesmo direito com a qual lhe arrebataram, ou este lhe serve de base para retomá-la, ou não se presta em absoluto para subtraí-la”.  Foi assim que Rousseau ao elevar o tom do discurso daqueles que o precederam, se fez o precursor das doutrinas socialistas, que irão se desenvolver especialmente a partir do século XIX. Mas, que fique claro, que tal como preconizou Bacon, ninguém “pensa”, “idealiza”, “planeja” ou “realiza” alguma coisa sozinho. Nada é obra de apenas um dia, e é preciso, mais de um dia e mais de uma pessoa para alçar um sonho à realidade.  

terça-feira, 22 de novembro de 2011

VII - O DESPERTAR DAS REDES ORGANIZADAS DE INFLUÊNCIA




            Durante a Idade Média existiam apenas duas grandes redes de influência na Europa: a eclesiástica e a nobiliária. A rede nobiliária ganha consistência a partir do século XI, quando os reis europeus a fim de preservar, engrandecer e fortalecer o poder que possuíam passam a fazer uso do casamento como forma de selar as ligações comerciais e outros interesses entre os reinos. O resultado foi o surgimento de poderosas famílias da nobreza, entre as mais renomadas estão as famílias dos Capeto, Valois, Anjou, Bourbon, Orleans da França; Canute da Dinamarca; Beauclerc, Plantagenet, Lancaster, Tudor da Inglaterra; Stuart da Escócia; Brabant da Lorena; Hapsburg da Suíça e da Áustria; Médici de Florença; Brandenburg da Prússia; Aragão, Castilha, Navarra da Espanha e Borgonha, Bragança de Portugal. A História oficial padrão não oferece ao estudioso as informações da intima relação que estas famílias tinham entre si, muito menos esclarece que a maior parte dos fatos históricos do tempo destas poderosas famílias são decorrentes, em verdade, de mesquinhas disputas familiares. Basta dizer que todas as famílias mencionadas possuíam, de uma maneira ou de outra, laços de parentesco entre si, os quais não eram do conhecimento do populacho europeu.  

            No passado medieval as famílias camponesas na iminência do perigo tinham como proteção a segurança dos muros dos castelos dos senhores feudais. Com o desenvolvimento comercial a partir do século XII surgiram os burgos, nome dado pelos franceses às vilas que se formavam nos arredores das propriedades da nobreza encastelada. Uma nova rede de influência passa a se formar entre os comerciantes, mercadores e financistas chamados de burgueses. Estradas são abertas para o transporte de mercadorias ligando vários pontos da Europa, com isso os europeus passam a viajar de um lado para outro em suas carruagens, fosse por negócios ou prazer, o que ampliava a troca de informações entre os reinos europeus. Com o advento do período das Navegações ao final do século XV um horizonte de oportunidades se abriria aos olhos aventureiros dos europeus.

            A Igreja de Roma adota o nome de Igreja Católica Apostólica Romana, católica em reconhecimento a autoridade do papa e apostólica pelo aceite da doutrina que emana da Santa Sé em Roma. A antiga basílica de São Pedro erguida por Constantino a partir do século XVI deu lugar ao maior templo católico do mundo, onde a inspiração renascentista pode se manifestar em sua maior grandeza. O centro do controle do catolicismo se erguia majestoso enquanto a Reforma protestante incendiava a Europa, usando da ostentação da igreja de Roma como justificativa para a sua pregação puritana.

            Nada poderia ter sido mais revolucionário neste período do que a ascensão de uma jovem mulher ao trono com plenos poderes para governar. Até então as mulheres européias tinham sido oprimidas de maneira absoluta pela doutrina que emanava da Igreja de Roma, que as considerava indivíduos comparáveis aos animais, destituídas de alma. Elas foram sujeitas aos maiores desrespeitos, tal como o cinto de castidade, condenadas ao silêncio e a ignorância. Durante o período da Inquisição as mulheres foram as maiores vitimas de torturas e mortes pela fogueira, pois o estigma do pecado lhes fora outorgado a revelia pela moral judáica-cristã bíblica. Será apenas, tão apenas, aos ventos libertadores do protestantismo que Elizabeth I pode ser rainha da Inglaterra, apesar de ser filha ilegítima, e manter-se solteira sem a imposição de um casamento para exercer o poder real e governar plenamente, coisa até então inadmissível na moral da Europa cristã.

            Rejeitada pelo pai desde o nascimento por ser mulher, passou a infância e adolescência em busca do amor paterno para suprir a orfandade materna. De compleição delicada como e mãe e cabelos ruivos e rebeldes como o pai, dele herdaria o gosto pela literatura, ressaltando suas qualidades na escrita e na poesia. Amante do conhecimento encontrou conforto nos estudos e na fé protestante. Perseguida após a morte de seu pai, Elizabeth chegou a ser encarcerada na Torre de Londres, mas o Parlamento lhe restituiu a liberdade, passando a viver exilada da corte. Sua irmã Maria, filha de Catarina de Aragão, se casara com Filipe Habsburgo, filho de Carlos V, Imperador do Sacro Império Germânico. Os ingleses não viam com bons olhos o reinado de Maria e Filipe, situação que ficará mais complexa quando com a abdicação de Carlos V, em 1556, e seu filho recebe a coroa da Espanha como Filipe II. Quando Maria morreu após cinco anos de reinado em razão dos sucessivos abortos decorrentes de sua tentativa de produzir um herdeiro, houve festa na Inglaterra, sobretudo dos protestantes que foram perseguidos violentamente e mortos. Elizabeth foi recebida com ovação pelo povo quando se tornou rainha em 1558, livrando a Inglaterra do cerco dos Habsburgos católicos.  

            Elisabeth I falava e escrevia além do inglês, mais cinco línguas: francês, italiano, espanhol, grego e latim. Dotada de arguta inteligência e sagacidade tinha uma impaciência e um mau gênio na mesma medida. Quando tomou a decisão de não se casar para servir melhor ao seu reino não houve que a demovesse da idéia, causando enormes querelas com seus conselheiros. Quando em 1959 ela assumiu o título de Suprema Governante da Igreja da Inglaterra, a polêmica foi ainda maior, mas o ato acabou sendo aprovado pelo Parlamento, para escândalo da Igreja Católica que via como um acinte uma mulher bastarda ocupar um cargo equiparável ao do papa. Estava aberta assim a rivalidade papal contra a ameaça à cristandade representada pela rainha inglesa. Contudo, Elizabeth I seria um exemplo de tolerância religiosa durante o seu reinado.

            Sabedora da astúcia conspiradora que a cercava, Elisabeth tomou uma medida de prevenção original para e época, e encarregou seu Secretário de Estado, Sir Francis Walsingham, de organizar o primeiro serviço de espionagem de forma permanente. De 1578 a 1583, Sir Francis Walsingham despendeu seu em tempo em viagens diplomáticas e a formar uma rede de espiões no continente europeu, chegando a pagar várias dezenas deles do próprio bolso. Foi com o serviço de inteligência que Elisabeth se manteve no trono a despeito das sucessivas conspirações de sua prima católica e primeira na linha de sucessão, a rainha da Escócia, Mary Stuart, que era neta da irmã de Henrique VIII, Margareth, e sua mãe era Madeleine de Valois, filha de Francisco I, rei da França. Do mesmo modo a derrocada sensacional da Armada Espanhola em muito se deveu às inúmeras informações despachadas a Walsingham, pelos espiões infiltrados nas mais diversas posições possíveis no continente. Entre os membros mais conhecidos da sua rede encontrava-se ninguém mais que o notável Sir Francis Bacon.

            A vida de Francis Bacon é particularmente controvertida, cheia de altos e baixos como se a ele faltasse qualquer vestígio de bom senso. Bem nascido, pertencia à Casa de York, e como membro de uma nobre família fez seus estudos no Trinity College me Cambridge, logo revelando uma acurada capacidade intelectual. Seu pai, Nicholas Bacon, era o principal secretário da rainha desde que ela subira ao trono em 1558. Em razão da influência de seu pai o jovem Bacon foi servir à embaixada inglesa em Paris aos quinze anos, em 1576. Ele voltaria à Londres aos três anos por causa da morte do pai. Por ser o filho caçula ficou sem uma herança adequada para o próprio sustento, mesmo assim sua renda permitiu-lhe fazer o estudo de Direito em Cambridge, onde alcançou consagrado destaque intelectual. Mas Bacon não pode ocupar qualquer cargo público até 1598, devido ao fato de seu tio, William Cecil, ter sido introduzido por seu pai ao serviço de rainha como Secretário do Tesouro desde 1572, e vindo a substituir o cunhado no cargo por ocasião de seu falecimento até 1508. Neste ínterim Francis Bacon passou sérias dificuldades financeiras, estando habitualmente envolvido em dividas.

            Em 1584, Bacon fez amizade com Robert Devereux, o Conde de Essex, como era mais conhecido, cujo padrasto há quatro anos, Robert Dudly, era o favorito da rainha e secretário particular desde 1558. O Conde de Leicester, Robert Dudley, permanecera celibatário por treze anos desde a morte de sua primeira esposa, em 1560, dedicando-se totalmente aos serviços da rainha Elizabeth I, até que se casou secretamente com uma amiga de infância da rainha em 1573. Quando Elisabeth I soube sentiu-se traída e proclamou o casamento de Dudley ilegal, pois afinal ninguém da corte podia se casar sem a sua permissão. O fato de ter sido anulado o casamento permitiu que Dudley se casasse com a mãe de Robert Devereux, prima de Elizabeth, por parte de sua mãe Ana Bolena, o que contrariou novamente a rainha, assim em 1587 Dudley perdeu o posto de favorito e secretário particular da rainha e foi enviado para frente de batalha, onde demonstrou apenas sua incompetência militar, e veio a morrer sem nenhum heroísmo em 1588 nas cercanias de Oxford. Robert Dudley substituíra o padrasto deste 1587, com sua morte a estrela de Devereux começou a brilhar e ele se casou com a filha do chefe do serviço secreto da rainha, Sir Francis Walsingham, falecido no mesmo ano de 1590. No ano seguinte Devereux se tornou o secretário de relações exteriores de Elizabeth I, além de seu favorito, enquanto Francis Bacon se tornava o conselheiro confidencial da rainha aos trinta anos.

            Apesar do prestígio da nova posição, Francis Bacon continuava sem ganhar um tostão por seus serviços. Afinal lhe foi conseguida uma cadeira no Parlamento, mas seu pouco interesse pelos meandros da política e sua inabilidade no exercício desta o levam ao insucesso no cargo, ficando outra vez em péssima situação financeira. Em 1595, sem nenhum cargo público ou meio de sustento, Bacon resolve que a melhor saída, então, é se casar. Mas, até nisso fracassa gloriosamente. Em 1597 publica sua obra Ensaios, o que já seria suficiente parta ter lhe dado um lugar de destaque na literatura inglesa, mas não o salvou de ser preso por dividas no ano seguinte.

            A despeito de todo o desastre em administrar a sua vida pessoal, a reputação de Bacon crescia aos olhos da rainha, que apreciava muito a sua profunda intelectualidade.  Lord Burghley, William Cecil, faleceu em 1598, mas seu filho Robert Cecil o substitui no cargo, com isso o caminho aos cargos públicos remunerados continuaria fechado para Bacon. Mesmo assim a rainha o colocou a seu serviço, vindo este a adquirir cada vez mais a sua confiança. Sua relação com Elisabeth I passou a ser ainda mais favorecida após romper sua amizade com Devereux, cuja arrogância excessiva passara a desagradar à rainha, e ela a sua maneira o mandou para o inferno, o enviando obrigado à Irlanda para conter as manifestações rebeldes, que ali tinham lugar em 1599. Devereux foi chamado em desgraça à Inglaterra em 1601, foi colocado permanentemente fora dos serviços da rainha e acabou se envolvendo numa conspiração política para a tomada do controle de Londres. Preso, foi declarado culpado de traição e executado ao final de fevereiro de 1601.

            São muito raros os relatos sobre os últimos anos do reinado de Elizabeth I, os historiadores em geral consideram de importância relevante apenas três fatos neste período: o fim da conspiração francesa com a execução de Mary Stuart em 1587, o fim da ameaça espanhola com a vitória espetacular sobre a Invencível Armada em 1588 e o fim dos complôs internos com a execução de Robert Devereux em 1601. Mas, existe um fato desconsiderado de suma relevância; a criação por decreto real a 31 de dezembro de 1601 da Companhia Inglesa das Índias Orientais, que inicialmente foi chamada de The Governor and Company of Marchants of London Trading into The East Indies posteriormente alcunhada de John Company. Esta companhia reunia em si um sindicato comercial e o monopólio de todos os negócios realizados nas Índias Orientais e se tornou a maior rede de influência comercial do mundo até o século XIX.

            Henrique VIII dera inicio ao período das navegações inglesas, mas foi com Elisabeth I que a navegação atingiu franco progresso tendo a frente das expedições Francis Drake (1540-1596), que além de ter sido o primeiro a circunavegar o globo fez o reconhecimento do litoral e rios da América do Norte. Com o crescente conflito com a Espanha, que nesta época reunia a coroa de Portugal, a rainha Elisabeth I outorgou a Carta de Corso aos comandantes da sua frota naval, permitindo que eles atacassem e pilhassem os navios das nações inimigas, e tinha por conceito de “inimigas” as nações que causassem algum tipo de obstáculo ao expansionismo marítimo inglês, logo os galeões de Filipe II foram os mais atacados, rendendo uma fortuna aos investimentos feitos por Elisabeth em seu preferido almirante, que seria consagrado em seu heroísmo na derrocada da Invencível Armada. A sina do destino se abateria sobre Drake em 1596, a morte lhe sobreveio não de alguma maneira heróica, mas através de uma prosaica infecção intestinal em Porto Rico, no Caribe. Sem Drake restou à rainha apenas Walter Raleigh, que após fundar a colônia de Virginia, na América do Norte, teve uma breve e fracassada experiência de agente de viagens de colonizadores. Contudo obteria sucesso como mestre de espionagem de Francis Walsingham em 1586, e por seus serviços recebeu o cargo de governador da ilha de Jersey, no canal da Mancha em 1600. Deste modo a criação da Companhia Inglesa das Índias Orientais foi o instrumento usado por Elizabeth I para assegurar a posse dos territórios coloniais conquistados durante o seu reinado e promover o início da colonização inglesa nestas áreas.  

            A idéia de Elizabeth I de criar uma companhia comercial foi considerada tão boa, que Frederico Henrique, príncipe de Orange-Nassau, governador das Províncias Unidas, autorizou a formação da companhia privada Companhia Holandesa das Índias Orientais no ano de 1602. Até 1581 as Províncias Unidas fizera parte dos Países-Baixos junto com a Bélgica e Luxemburgo, após a morte de Carlos V este território ficou com seu filho, Filipe II, rei da Espanha. A partir de 1568, as províncias protestantes do norte dos Países-Baixos se reuniram com Guilherme de Nassau, príncipe de Orange, contra as províncias da Bélgica e de Luxemburgo, alinhadas ao catolicismo romano da Espanha. Com Guilherme I de Nassau e seu filho Maurício de Nassau-Siergen os holandeses tomariam consciência de sua força. O início da navegação holandesa se deu em 1580 e logo o novo país tornou-se uma grande potência marítima e comercial, passando a estabelecer seu próprio império colonial. Em pouco tempo a rivalidade se instalou entre as companhias comerciais, inglesa e holandesa, marcando um período de grandiosa atividade econômica, que favoreceu, sobretudo, a emergente classe burguesa européia.

            Na última década do século XVI, as grandes mudanças que estavam por vir já se revelavam no pensamento intelectual dos escritores ingleses, mas será através da pena daqueles que escreviam para o nascente teatro londrino, que os ventos do novo tempo se anunciariam. O primeiro teatro londrino foi o The Rose (A Rosa), novamente ela, cujas escavações feitas em 1989 confirmaram ser o primeiro recinto fechado para este fim, datando de 1587. No inicio as peças teatrais eram representadas por trupes de atores nas ruas de Londres e seus autores ficavam no anonimato, os primeiros autores teatrais renomados foram Cristopher Marlowe (Dr. Fausto), Ben Jonson (Valpone), Thomas Kyd (Tragédia Espanhola) e William Shakespeare com uma série de peças de sucesso.

             A primeira vez que se ouviu falar de Shakespeare em Londres foi por volta de 1592, quando atuava como ator cômico, em 1598 já era ator renomado em uma peça de Ben Jonson e entrara para a famosa companhia The Lord Chamberlain’s Men, em referência às funções do cargo de “chamberlain” na corte, responsável por sua organização e funcionamento.  A companhia faria do Globe Theatre inaugurado em 1599 o seu quartel general. Fontes seguras dizem que a rainha Elizabeth I esteve na primeira performance de Sonhos de uma Noite de Verão de Shakespeare, certamente deve ter sido no Globe Theatre.

            No que diz respeito a William Shakespeare nenhuma informação é muito confiável, o que envolve o autor numa bruma de mistério. As alegações de que o seu nome foi usado como pseudônimo por pessoas que queriam se manter no anonimato vai desde o seu contemporâneo no ofício Cristhopher Marlowe à própria rainha Elizabeth. Entre as pessoas aventadas, que poderiam ter escrito as suas peças, figuram Edward de Vere, Conde de Oxford, que era casado com a filha de William Cecil e ninguém mais que Francis Bacon. Certo é, que em sua peça Hamlet, escrita entre 1600 e 1601, Shakespeare aos 37 anos apresenta tanto uma profunda maturidade, como uma ruptura de seu estilo com a representação da introspecção psicológica do personagem, vivida num brilhante monólogo. A partir de então passa a ocorrer um fluxo de palavras novas, nunca antes usadas por Shakespeare e talvez criadas por ele, calculado pelos estudiosos em torno de mais de 600 palavras, contribuindo para o enriquecimento da língua inglesa. Além desta questão lingüística as peças de Shakespeare passam a propor uma reflexão sobre a natureza do comportamento humano, dando ao teatro uma função não só de entretenimento, mas também de instrumento cultural e de divulgação de novas idéias. Este fato em si ultrapassa a importância de quem realmente foi Shakespeare, pois a despeito da importância incontestável do autor em si, é o surgimento da arte teatral como um todo, o grande elemento de transformação social após o século XVI, tendo em vista o analfabetismo reinante na maioria da população européia, a quem os livros não atingiam.

            Outro legado da rainha Elisabeth I para a transformação de uma época, foi também sua própria atitude como figura pública e governante. Seu personagem real foi inteiramente construído a fim de representar a própria Inglaterra nela mesma, suas roupas luxuosas, sua aparência perfeita e inabalável visavam conquistar a confiança popular e despertar um ainda inexistente orgulho patriótico, o qual promovesse a união nacional. Ela seria nos conceitos de hoje o maior marketing da Inglaterra para os ingleses. Durante os 45 anos de seu reinado fez mais que 25 visitas regionais, conhecidas como “progresses”, sempre montando a cavalo em preferência a carruagem. Nestas ocasiões sua imagem refletia o triunfo e o sucesso da Inglaterra na beleza de suas roupas e na riqueza de suas jóias. Nunca deixou de manter contato com o seu povo, não importava o perigo que pudesse correr por causa da intranqüilidade das conspirações que sempre estava sujeita. Ao final de seu reinado ela conseguira o que tanto desejava: a unidade da Inglaterra e um forte patriotismo do povo inglês, mas, propositalmente ou não, levando em conta a arguta lógica elisabetana, ao seu sucessor legou os cofres vazios da coroa.

            A Rainha Virgem morreu ao final do inverno europeu de 1603, marcando o fim de uma era que passaria para a história inglesa como gloriosa. Mesmo depois de morta a popularidade de Elisabeth I permaneceu entre os ingleses e sua imagem de mulher forte e determinada inaudita na história ocidental transcendeu as fronteiras britânicas para ganhar o mundo, e ser inspiradora para a mudança gradativa do papel feminino dentro da sociedade nos séculos que viriam. Contudo, esta mudança no perfil feminino viria a ser combatida de imediato pelo sucessor de Elisabeth, o seu primo em segundo grau por parte de pai, James VI Stuart, rei da Escócia, que subiu ao trono inglês em 1603 como James I da Inglaterra.

            Um dos desejos de Henrique VIII era reunir as coroas da Inglaterra e da Escócia. Tendo em vista esse projeto propiciou que sua irmã Margareth Tudor se casasse com James IV da Escócia, descendente de Roberto de Bruce. Deste casamento nasceu James V, que se casou com a filha de Francisco I da França, Maria de Guise, que lhe deu Maria Stuart como filha legitima, enquanto teria sete filhos ilegítimos de sua amante Margarida Erskine.  Por sua vez Margareth Tudor ao ficar viúva de James IV se casou com Archibald Douglas, e sua filha deste casamento, Margareth Douglas se casou com Matthew Stuart e tiveram Henrique Stuart, no futuro Lord Darnley e Duque de Albany, que pelo seu casamento com Mary Stuart, seria pai de James VI da Escócia e que ao subir ao trono inglês reuniu as duas coroas em uma só, realizando a ambição de Henrique VIII através da complexa rede de influência familiar das casas reais, fato comum na época.

            Todavia na prática chegar à união das coroas inglesa e escocesa não foi nada fácil, foram sessenta anos de tramas e conspirações que envolveram um confronto entre os interesses dos partidários do catolicismo e do protestantismo, e a disputa da casa real francesa e inglesa pela coroa da Escócia, reunindo também a França, a Espanha, o Sacro Império e a Igreja Católica Apostólica Romana em torno do mesmo objetivo de retirar Elisabeth do trono inglês, pois sob o ponto de vista católico ela era filha ilegítima, por isso não tinha direito ao trono, sendo Mary Stuart a legitima herdeira do trono inglês. Mary Stuart, em razão das mortes de seu pai e do Duque de Albany, Henry Stuart, antes do seu nascimento, foi feita rainha da Escócia com apenas um ano de idade, o acordo de seu casamento com o filho de Henrique VIII, Eduardo VI, foi rompido e com apenas cinco tornou-se noiva de Francisco, o delfim da França, para sagrar a aliança da Escócia com a França feita por sua mãe Maria de Guise, regente de 1554 a 1560 do trono da Escócia. Maria Stuart viveu na França sob os cuidados de sua sogra Maria de Médici dos cinco anos até um ano após a morte de seu marido Francisco II, da França, quando voltou à Escócia em 1561. Margareth Douglas franca partidária do catolicismo arquitetou o casamento de Maria Stuart com seu filho Henrique Stuart, e posteriormente exerceria ampla influência diplomática para ascensão de seu neto Jaime ao trono inglês.

            Tendo como nome de batismo Charles James em honra de seu padrinho Carlos IX da França, Jaime I da Inglaterra teve uma infância conturbada, sua relação com a mãe foi inexistente, logo após esta ter abdicado ao trono escocês ao seu favor em 1567, quando James tinha apenas um ano de idade, caiu prisioneira da Inglaterra por 19 anos e aonde veio a morrer. O poder real durante este período foi exercido por várias regências, alternando as facções familiares protestantes com os tios ilegítimos Jaime Stuart e James Erskine, e católica com o avô Matthew Stuart e o tio James Douglas, sendo que este último foi regente de 1572 a 1581 e se tornou o homem mais poderoso da Escócia.  Educado basicamente sob o presbiterianismo escocês, Jaime sofreu os conflitos religiosos entre seus parentes próximos católicos, episcopais e presbiterianos, que faziam da religião um aspecto de relevante importância política.  Em 1583, após um episódio em que foi raptado durante um ano por extremistas presbiterianos, Jaime fez um ato real que colocou a Igreja da Escócia, presbiteriana, diretamente sob o controle real, ato que teve a aprovação do Parlamento escocês, quando Jaime se tornou também rei da Inglaterra e, logo, chefe da Igreja Anglicana, seu excessivo poder causou a desestabilização do presbiterianismo.

            Em 1586, Elizabeth I e Jaime IV da Escócia se aproximaram, e após a execução de Maria Stuart, Jaime passou a ser o herdeiro presuntivo do trono inglês. A partir de então James passou a reduzir a influência da nobreza católica escocesa e em 1589 se casou com a princesa luterana Ana da Dinamarca. Quando os recém casados ao retornarem do Oslo, onde se dera a cerimônia de matrimônio, já na região costeira de North Berwich, a frota real foi fustigada por uma violenta tempestade, e o navio dos nubentes reais por pouco não afundou. A superstição levou as pessoas a dizerem que a tempestade fora causada por bruxaria. Nos primeiros dias de maio de 1590, o casal real chegou são e salvo à Escócia, no dia 17 daquele mês Anne foi coroada rainha da Escócia, cedo Anne se converteria para o catolicismo surpreendendo a todos com a imprevista extravagância que desagradaria aos protestantes escoceses e depois aos ingleses.

            A crença de Jaime de que tinha sofrido um atentado causado por bruxaria o levou a um estudo sobre demoniologia, ficando convicto do mal que as bruxas poderiam trazer a ele próprio e ao seu reino. O resultado disso foi que centenas e centenas de mulheres foram condenadas à morte por bruxaria e seus corpos lançados a um local então chamado Nor Loch, onde hoje abriga os jardins da Princes Street, na cercania do castelo de Edimburgo. Essa obsessão pela bruxaria e afins não abandonaria o rei escocês. Em 1604, logo após assumir a coroa inglesa, Jaime I teve como um de seus primeiros atos fortalecer a lei elisabetana contra a bruxaria, estendendo a pena de morte sem clemência a quem se comunicasse com demônios ou entes familiares falecidos e praticasse qualquer forma de feitiçaria. A lei elisabetana de 1563 foi feita para tirar o poder religioso da Inquisição Católica dentro da Inglaterra, trazendo para o direito comum o julgamento de atos de feitiçaria considerados como crime e punido com morte se fossem feitos com a intenção de causar destruição ou morte. Já a proposta de Jaime I era bem outra, era estabelecer uma caça às bruxas e aos feiticeiros por motivos dos mais variados que a própria bruxaria em si, permitindo que bens e propriedades dos acusados fossem doados a Coroa para serem livres da acusação. O que deu início a mais perversa perseguição da história da Inglaterra.

            Em 1605, Jaime I precedia Bossuet como teórico do Direito Divino ao discursar no Parlamento dizendo: “Os reis são com justiça chamados de deuses, pois exercem algo como o poder divino na Terra”. Católicos foram perseguidos para aumentar o poder da Igreja Anglicana e os presbiterianos também o foram, por contestarem a autoridade absoluta do rei. Na medida que o tempo passava o rei se revelava mais e mais excêntrico, em 1607 favoreceu o seu ex-pagem, Robert Carr, que tinha 17 anos, com as propriedades do navegador Walter Raleigh, enquanto este estava aprisionado na Torre de Londres acusado de traição. Robert Carr receberia nos anos seguintes os favores do rei, que criaria para ele o titulo de Duque de Somerset, quando este passou a ocupar o cargo de Lord Chamberlain em 1613. Logo em 1614, Jaime teria um novo favorito George Villiers, então com 22 anos, para ciúmes de Robert Carr, o qual em 1615 caiu em desgraça devido a um caso escabroso de intriga e assassinato. Somerset foi substituído de imediato pelo rei por Villiers, que em 1623 recebeu o titulo criado pelo rei de Duque de Buchingham. Esse apego às amizades de jovens bonitos deu ao rei a fama de homossexual, dita pelos seus defensores que não passa de intriga feita pelos ingleses contra o rei de origem escocesa, as duvidas permanece, já que os fatos falam por si.

            É exatamente durante o reinado de Jaime I, que um súbito sucesso atinge algumas figuras renomadas aventadas como homossexuais por alguns estudiosos, a despeito de ser crime tal costume na época, entre eles são citados Francis Bacon e William Shakespeare.

            Bacon foi feito cavaleiro por Jaime I em 1603, e finalmente começou a receber salário de Conselheiro Real. Bacon cresceu na confiança do rei, em 1613 foi nomeado Procurador Geral e ocupou uma cadeira parlamentar por Cambridge a fim de defender os planos reais, mas como servia ao rei sua presença no Parlamento foi objetada e teve que sair, então o rei o fez Guardador Geral do Selo da Inglaterra, e foi feito Barão de Verlum e em 1618 finalmente alcança o cargo que sempre ambicionara; Lorde Chanceler. Mas, em 1621, cai em desgraça acusado pelo Parlamento de receber propinas e de vender monopólios e outros privilégios em razão de suas dividas pessoais. Réu confesso do crime de suborno foi condenado a uma enorme multa e à prisão na Torre de Londres. Desde 1611, o rei adotara a venda de títulos de nobreza para ressarcir as dividas altíssimas da Coroa, e não sendo inocente dos crimes do seu Chanceler, deu o indulto a Bacon, que ficou apenas quatro dias na prisão, mas sua carreira pública estava terminada.

            Em 1603, James I adota a companhia em que Shakespeare trabalhava a The Chamberlain’s Men, que passa a ser conhecida como The king’s Men. A partir de então o entusiasmo muito elisabetano de Shakespeare passa a dar lugar a sombrias tragédias (Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear, Antonio e Cleópatra, Coriolano) e raríssimas comédias. Em 1607 escreve os seus Sonetos, vários dirigidos a um “fair Lord”, podendo ser interpretado como um jovem ou um fidalgo formoso, em ambos os casos podem ser considerados os primeiros poemas homoeróticos da Literatura inglesa. Shakespeare enriquecera com a atividade teatral a ponto de adquirir em 1597, um ano após o falecimento do filho, uma das maiores casas de sua terra natal, Stratford-upon-Avon, chamada New Place (Novo Lugar), e também uma propriedade em Londres alguns anos depois no tempo de Jaime. Em 1610, ele se retirou de Londres para New Place de maneira permanente, as peças escritas nesta época revelam um período de paz espiritual (Cimbelina, A tempestade, Henrique VIII). Shakespeare viveu até o fim de seus dias com sua primeira mulher Ana e suas duas filhas, vindo a falecer com 52 anos de idade, em 1616.

            Já Bacon passou seus últimos cinco anos de vida em relativa pobreza, sua morte guarda uma certa ironia, pois convencido da possibilidade de conservação de alimentos congelados comprou uma galinha para sua experiência, só que no afã de congelar a galinha na neve pegou uma pneumonia violenta e faleceu aos 65 anos de idade, em 1626. No ano anterior James I morrera em decorrência de complicações da insanidade gradativa que o atingira nos últimos anos de reinado. Fosse mesmo Bacon fundador da Ordem dos Rosacruzes poderíamos pensar em várias possibilidades para a morte de James I, até feitiçaria. Mas, por ora, fiquemos apenas com o trecho final de sua obra Nova Atlântica, escrita de 1614 a 1617:
           
            “Estes são, meu filho, os tesouros da Casa de Salomão.

            No que diz respeito aos diversos empregos e ofícios dos nossos membros, dir-te-ei que temos doze que viajam pelos países do estrangeiro ocultos sob o nome das outras nações – pois nós escondemos o nome da nossa – os quais nos trazem livros, resumos e modelos de experiências realizadas em todos os outros países. A estes nós chamamos de mercadores de luz.
            Há três que colecionam as experiências de todos os livros. A estes chamamos solicitantes.

            Outros três colecionam as experiências de todas as artes mecânicas e das ciências liberais e práticas que não pertencem às artes. A estes chamamos caçadores.

            Temos três que tentam novas experiências, conforme acham convenientes. São chamados de bandeirantes ou batedores.

            Três relatam as experiências dos quatro anteriores, ordenando-as por títulos e assuntos, com o objetivo de facilitar a observação das mesmas e a conclusão dos axiomas partindo delas. A estes chamamos compiladores.

            Outros três fazem o trabalho de refletir, pesquisando nas experiências dos seus companheiros e tentando tirar delas coisas úteis e práticas da vida e o conhecimento humano, tanto no que diz respeito às obras, como à simples demonstração de causas, meios de adivinhação natural, descobrimento de virtudes e componentes dos corpos. A estes chamamos doadores ou benfeitores.

            Após várias reuniões e consultas de todos os membros, para reconsideração dos trabalhos anteriores, outros três membros cuidam da direção de novos experimentos mais luminosos e que penetram mais profundamente na natureza. A estes chamamos de lâmpadas.

            Temos três que executam as experiências decididas e delas prestam contam. Estes recebem o nome de inoculadores.

            Finalmente, há três membros que recolhem as descobertas realizadas pelas experiências, reunindo-as com maior número de observações, axiomas e aforismos. A estes chamamos de intérpretes da natureza.”

            Bacon escreveu Nova Atlântica objetivando uma releitura do romance de critica política, escrito pelo religioso católico inglês Tomás Morus (ou More) praticamente um século antes, chamado Sobre o ótimo Estado da República e sobre a Nova Ilha Utopia, mais conhecido pela palavra criada por Morus: Utopia. Morus em sua obra desenvolve o pensamento de uma sociedade perfeita, inspirada na República Platão e nos valores cristãos, dando vazão ao seu descontentamento com a sociedade inglesa e européia de sua época. Bacon deita sua reflexão sobre o pensamento desta sociedade perfeita imaginada por Tomás Morus e cria sua própria utopia, uma perfeição irrealizável.

            Comumente este trecho final de Nova Atlântida é dado como uma tentativa de Bacon de elaborar um método ciêntifico, é uma explicação muito adequada ao pensamento católico de ensino filosófico. Mas, indo além desta conveniente explicação e tendo o conhecimento dos fatos ocorridos durante a vida de Francis Bacon e sob a luz do conhecimento pouco divulgado oferecido pelas nascentes sociedades secretas daquele período, vemos que mais que querer relatar um método ciêntifico, Francis Bacon expõe de maneira hermética como o uso da informação deve ser feito, ou seja, como o serviço de inteligência inglês procedia. O que passa a ser interessantíssimo do momento que basicamente o procedimento de inteligência, ou espionagem, dos tempos atuais são os mesmos que os descritos por Bacon. Afora este aspecto, podemos observar também a tríade fraterna que dará origem tanto à Maçonaria como aos Rosacruzes. Mesmo que estes dois aspectos sejam desconsiderados, um terceiro se impõe de maneira racional e óbvia: a proposta de que só através de um trabalho conjunto de várias pessoas é possível progredir no conhecimento humano, de modo a conduzir a uma real evolução da ciência e da tecnologia, através do qual se dará um verdadeiro progresso da sociedade.

            Até Francis Bacon o conhecimento era dogmático, o pensamento livre era inadmissível, não havia uma dialética nem o debate, existia apenas um trabalho solitário dos pensadores. A proposta de Francis Bacon do trabalho em conjunto dos pensadores será fundamental para o desenvolvimento intelectual que se dará a partir de então. Um trabalho que em muitos aspectos corresponderá à bela descrição do método dado por Bacon, dando origem a uma nova rede; a de influência intelectual. Esta nova rede se aliará com as redes de espionagem, do comércio, do protestantismo e das sociedades secretas, e sacudirá os alicerces da Europa com a maior revolução social de todos os tempos, rompendo a velha ordem estabelecida pelas redes seculares da Igreja de Roma e da nobreza católica. A união de alguns se fará a força amalgamadora de muitos, tal como no método idealizado por Bacon, tão desconhecido e pouco reconhecido por seus críticos modernos.