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terça-feira, 17 de abril de 2012

XIII – O FIM DA IGNORÂNCIA E A METAMORFOSE HUMANA


Nos últimos capítulos nós tivemos a oportunidade de com exemplos reais do passado verificar que o ser humano é um tecelão de relações humanas, tecendo assim o seu tecido social como se fosse uma belíssima tapeçaria. Nós pudemos ver as intrigantes relações que aproximam e unem aqueles poucos que possuem o poder para decidir os destinos da maioria, e que esse tipo de comportamento não é de modo nenhum um estado de constante “conspiração” para ganhar-se cada vez mais poder. Poder-se-ia dizer mais corretamente que seria um constante “jogo de interesses”, onde uma das partes perderá e outra ganhará. Um jogo que alternará vancedores e perdedores, num exercício constante do intelecto humano em que sempre vencerá o melhor: aquele que tiver mais engenhosidade e criatividade para elaborar táticas e estratégias para superar as dificuldades e os obstáculos existentes entre ele e o seu objetivo. Pois é desse constante conflito de forças antagônicas que o progresso humano se dá e dele é dependente. Se o conflito não existisse haveria um acomodamento decorrente da ausência de desafios para serem vencidos. O maior estímulo para essa atividade de tecelão é a “troca de interesses” entre as partes envolvidas – seja tanto por necessidade, ou benefício advindo dessa ação, quanto pelo desejo de posse – porquanto sempre estará em foco algo que seja valorizado que mereça ser “negociado” ou mesmo “tomado”, se uma das partes resistir à negociação. Da troca de interesses origina-se todo um  comportamento particular ao ser humano, o tornando um negociante nato em seu cotidiano, já que em qualquer aspecto que seja de seus relacionamentos ele sempre estará negociando uma coisa em troca de outra. Daí a razão de ser daquele sábio dito popular: “Nada é de graça neste mundo.”

Essa característica humana é tão óbvia e paupável que foi consagrada na milenar tradição histórica biblíca que tem por personagens Deus, Adão, Eva, a serpente e a maçã.

Está escrito no Livro do Gênesis:

“O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. Deu-lhe este preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia que o comeres, morrerás indubitavelmente.” (Gen. 2:15)

Formidável! Então, o Homem recebeu de Deus todos os tesouros do mundo sem ônus, grátis! Só para ser guardião do tesouro e cultivá-lo, sem maiores encargos, também só uma coisa não podia fazer: comer  do fruto da árvore do conhecimento e da sabedoria., que definitivamente não deveria ser comido pois era venenoso e o mataria. E, sem dúvida Deus não mentira para o Homem. Está aí um contrato de "trabalho" que parece em tudo vantajoso.

A história dá a entender que o Homem viveu sozinho por um bom tempo dando nome a todas às coisas e criaturas vivas que estavam no Éden, até que um dia tendo findado sua atividade de dar nomes a tudo que foi criado por Deus para ele guardar e cuidar, ele começou a ficar entediado, pois “não encontrava uma ajuda que lhe fosse adequada.” Mais certo seria dizer que não encontrava uma companhia que o complementasse adequadamente, já que o Homem for a criado por Deus com a capacidade de afeiçoar-se ao mundo que estava à sua volta,  pois sem esta capacidade de “afeição” ele não seria capaz de estabelecer qualquer vínculo intelectual ou emocional com qualquer as coisas à volta dele, o que o impediria de reconhecer o distinguir o “valor” entre as coisas de seu mundo, logo sua capacidade de “guardião” seria nula. Sem a capacidade de afeição ele não teria também a capacidade de “empatia” tão importantes para ele poder identificar as “necessidades” dos seres viventes do seu mundo que permitisse a ele cumprir a tarefa de cultivar e cuidar deles. O problema é que justo por conta da “afeição” e da decorrente “empatia”” o Homem logo viu que todos os bichos eram casais de seres assemelhados, macho e fêmea, e todos assim tinham companhia, menos ele, que não encontrava nenhum outro ser que lhe fosse assemelhado para ter por companhia. Portanto seria normal ao Homem que se sentisse sozinho e entediado, e isso o fizesse de certa forma infeliz. Vendo isso Deus que também tinha afeição por suas criaturas agiu rápido e providenciou uma companhia para ele: a Mulher.

E a história podia terminar neste ponto, com o Homem e a Mulher sendo “felizes para sempre” vivendo no paraíso do Éden que Deus dera para eles, em sua mais que perfeita “ignorância,” total ingenuidade e falta de consciência do próprio ser, tal qual crianças recém-nascidas. Infelizmente, o Gênesis apresenta um hiato, uma censura por assim dizer, o motivo pelo qual Deus dentre as tantas criaturas que ele mesmo criou teria criado uma que seria a encarnação da intriga: a serpente.

O texto apócrifo “A Hipóstase dos Arcontes (II,4), integrante dos textos de Hag Hammadi, descobertos em outubro de 1946, joga um pouco de luz sobre esse mistério; do que teria ocorrido para que o Homem e a Mulher fossem condenados por Deus a serem “infelizes para sempre” num mundo infernal. Com base neste texto pode-se imaginar que a Mulher criada por Deus de uma costela do Homem era de uma beleza tão indiscritível, tão pungente que parecia ser uma deusa e por isso teria despertado o desejo do mais belo e inteligente  dos arcontes (deuses ou arcanjos) de Deus, chamado Lúcifer, o qual queria aproximar da Mulher, ter contato com ela e conhecê-la intimamente. Mas, Deus o proibiu porque ele a fizera para o Homem e não poderia ser maculada pelos arcontes.

A partir desse momento, Lúcifer se colocou contra o Homem e se fez seu acusador, querendo provar que a criação do Homem era uma ameaça aos seres do Céu e ao próprio Deus, pois não seria capaz de ser devotado, obediente e servir à Deus como seus seres saídos dele o faziam. E, assim, ao melhor estilo de “cavalo de Tróia,” usando da sagacidade e do engano Lúcifer tomou a forma de uma serpente e foi colocar a Mulher à prova, para que ela caísse em tentação e desobedecesse à Deus e depois levasse o Homem também a fazer o mesmo.

“A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”A mulher respondeu-lhe:”Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: “Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais”. – “Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que, no dia que dele comeres, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses conhecedores do bem e do mal” A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para a inteligência, tomou dele, comeu e o apresentou ao seu marido, que o comeu igualmente.” (Gên. 3: 1-6)

Ora, o Homem e a Mulher conheciam a Deus e suas hostes celetiais  mas não tinham consciência que eram diferentes deles, até que Lúcifer na forma de serpente contou para a Mulher que ela não era como os deuses, pois não tinha “inteligência,” mas poderia ser como eles e despertou nela o desejo de ser como eles, o que a levou a comer do fruto proibido. Por isso está escrito no Gênesis: “O Senhor Deus disse: “Eis que o Homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois cuidemos que ele não estenda sua mão e tome também do fruto da árvore da vida, e o coma e viva eternamente.” (Gên. 3:22)

Assim, Lucífer conseguiu seu intento, ao promover a primeira “troca de interesses” da história humana, seduzindo a Mulher a comer de uma fruta para em troca se tornar uma “deusa”, e tendo a Mulher aberto sua “inteligência” decidiu que seria mais benéfico para ela que seu companheiro também tivesse a sua inteligência aberta, do que mantê-lo no estado original que fora criado por Deus, para que assim fossem iguais e permanecessem semlhantes. Foi assim, em razão do novo conhecimento adquirido pela Mulher, que permitia-lhe discernir entre o bem e o mal, que ela decidiu que o Homem deveria ser elevado de seu estado de ignorância, porque considerou isso um “bem” e não um “mal.” Por razão disso a Mulher  convenceu o Homem a comer do fruto proibido também. Porém, o que a Mulher não considerou foi que Deus exigia devoção, servidão e, sobretudo, obediência de todos, fossem saídos dele ou criados por ele, e que o ato da desobediência poderia ter consequências inesperadas.

Deus não poderia relevar a desobediência do Homem e da Mulher porque isso seria uma ameaça à ordem e à paz do Céu e à sua própria autoridade, e poderia levar a uma rebelião dos arcontes contra, assim Deus repreendeu não só ao Homem e a Mulher como também a Lúcifer, expulsando-os do Éden. Lúcifer foi o primeiro a ser punido por Deus, não só foi expulso do Céu como foi condenado a viver na mesma terra que o Homem e a Mulher, assim como colocou o ódio entre ele e a Mulher. Porém, Deus  paradoxalmente, os uniu numa relação de disputa, dando poder à Mulher para ferir a inteligência de Lúcifer e a Lúcifer o poder de deter o progresso do uso da inteligência da Mulher (“Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás no calcanhar” Gên. 3:15 ), e assim Lúcifer foi lançado à mesma terra em que o Homem e a Mulher viveriam como a criatura mais maldita entre todas as criaturas e tomou o nome de Satanás (ou Satan, em hebraico), que quer dizer o opositor (adversário ou acusador), mas Deus não lhe tirou seus poderes sobrenturais.  O castigo que Deus destinou à mulher vinculou-se à limitação de sua própria autorealização que passaria a ser impregnada de sofrimento e à sua submissão intelectual e física ao Homem, decorrente de seu próprio desejo por ele, afinal fora por seu desejo pelo companheiro que a Mulher decidira abrir-lhe a inteligência e levá-lo à desobediência (“… Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” Gên. 3:16). Então, o Homem deu a ela o nome de Eva, que quer dizer “vida” em hebraico, porque ela era a mãe de todos os viventes. (Gên. 3:20) e o Homem passou a se chamar Adão (em hebráico o nome pode ter vários significados desde ‘vermelho’, ‘belo’ ou ‘formoso’).   

Pobres Homem e Mulher apenas queriam ser iguais ao seu criador! O Homem fora criado à imagem e semelhança de Deus, mas não era o próprio Deus, era como uma cópia incompleta, e a Mulher, infeliz, nem mesmo isso era, acabando condenada a ser subjugada e dominada por seu desejo pelo Homem. A vingança de Lúcifer contra a Mulher foi assim completa, mesmo que fosse pelo ódio e não pelo amor a Mulher estaria ligada a ele para sempre, pois assim Deus determinara. Quanto ao Homem, esse não teria descanso e seria escravo do trabalho enquanto vivesse. Sem dúvida quem imaginou essa horrível história era um misógeno, certamente tinha uma aversão doentia à mulher e, o mais inacreditável, foi que essa crença discriminatória contra a mulher perdurou por milênios e ainda perdura.

O mais surpreendente ainda é que a investigação da origem dessa história lendária revela que ela foi modificada, primeiro pelos hebreus e depois pelos romanos, pois em verdade ela se origina da religião suméria, considerada por historiadores como Jean Bottero a mais antiga, apesar de outros reivindicarem que na tradição oral não seria, mas é a primeira sem dúvida nenhuma em documentação escrita, pois foram os sumérios os inventores da escrita.
Na religião suméria a Criação foi uma obra de “deuses e deusas” e a Biblía hebraica considera uma obra de "deuses" também ao usar o nome “Elohim”, a princípio o plural para “Eloh” (“A Elevada” ou “A Deusa”), mais do que o plural de “Eloi” (“O Elevado” ou “O Deus”), assim segundo os hebreus há uma concordância de que foi uma obra de deuses, contudo os romanos por ocasião da sua tradução da Bíblia modificaram para uma obra de “Deus”. 
Entretanto, a religião suméria dá uma abordagem bastante diferente, em que o demiurgo primordial é uma “Deusa” de nome Nammu, um ser feminino e não masculino. Nammu seria a mãe de todos os deuses, cujo símbolo pictórico era um mar primordial de aguás doces, ela teve dois filhos “Anu” (Céu) e “Antu” (Terra), e deles nasceu “Enlil” (o Ar) que separou os pais para sempre, se colocando entre os dois. Anu chorava tanto de saudades de Antu, que Nammu com pena dele recolheu suas lágrimas e deu para Antu (Terra) criando “Enki” ­– o senhor das águas doces portador dos segredos da vida e da morte e de toda mágica, senhor da inteligência e da sabedoria e o senhor do semen (da reprodução dos seres vivos) e era representado por uma “serpente” –,  e sua irmã “Ninhursag”, a deusa Mãe (também chamada pelos sumérios de Mamma ou Mami), senhora da terra, senhora da montanha, a Grande Rainha Sagrada (em sumério Ninmah), senhora dos vivente ou senhora da costela (em sumério Ninti, cuja idéia é associada a Eva hebraica) e foi ela que criou um belo jardim paradísiaco para que os deuses habitassem nele e e o jardim chamava-se Delmun (ou Edinu, de onde derivaria o Eden hebraico).
Ainda segundo a tradição religiosa suméria teria sido na 6ª geração dos deuses, que o deus Enki com a ajuda do deus Enlil teria criado o primeiro Homem a partir do barro criado pela deusa Ninhursag durante a criação do Delmun, tendo como propósito de serem servidos por suas novas criaturas – para que eles dessem conta dos trabalhos pesados – e eles deram a este primeiro ser humano o nome de "Adapa". Como as novas criaturas faziam muito barulho Enlil (deus do Ar) se aborreceu e fez um dilúvio para destruí-las, mas Enki salvou alguns deles e se tornou o "pai, protetor e orientador da humanidade". 
Como se pode notar claramente, ao contrário da tradição judaico-cristã – que demonisou a mulher, culpando-a de todos erros humanos –, os sumérios tinham um profundo respeito e devoção à imagem feminina e atribuem ao homem um certo demando comportamental que pode ser notado nas atitudes da histórias do deus Enki que é dado à infidelidade para com a sua esposa, a deusa Ninhursag, e por conta disso amargou a vingança da deusa, que fez recair sobre ele várias doenças, como forma de restringir seu comportamento inadequado.
Em outro episódio Enki deixa-se levar pelas reclamações de  uma jovem deusa, Inanna, ­a deusa de amor – que hora aparece como filha de Enki e outra como de Anu (Céu), simbolizada pelos sumérios tanto como uma estrela ou como por um leão. A tradição suméria conta que o deus Enki, que sempre gostava de se entreter com Inanna, que era alegre e divertida, um dia foi surpreendido  com a fúria da deusa que reclamava do pouco papel da sua esfera de influência, e para aplacar a furia da deusa o deus decidiu dar a ela todo o seu “Me” – o dom da vida civilizada (a sabedoria das instituições sociais, práticas religiosas, tecnologias e etc), que for a coletado por Enlil (Ar) e dado a Enki para ele ser o guardião do “Me”. A consequência dessa decisão insensata do deus foi que a deusa Enki de posse do “Me” só passou a dar os dons do “Me” àqueles que mais a cultuassem e a honrassem, de modo que ela se tornasse a deusa mais importante para seus adoradores. Eis aí mais uma história que revela como os sumérios consideravam a figura feminina inspiradora e não um obstáculo à realização masculina. Essa essa passagem também elúcida o motivo pelo qual o acesso do ser humano à vida civilizada depende dos seus amores e paixões, e não da sua capacidade intelectual, apresentando uma interpretação suméria do padrão humano de comportamento bem mais próximo à realidade do que uma idealização de como este deveria ser o constante nos documentos da tradição hebraica.     

Contudo, a história da criação do Homem, seja a maneira suméria ou a maneira hebraica, nos mostra que é justamente esse desejo humano de “elevar-se” e tornar-se semelhante a um deus, de ser tal e qual seu ideado criador, que despertou a consciência do ser humano sobre si mesmo. Do momento em que ele tomou conhecimento que não era igual aos outros seres viventes, que estava de alguma maneira acima deles, mas não tão acima assim para ser o Senhor desse mundo, ele passa a viver em busca dessa posição que almeja para si. Em seu íntimo despertou-se o desejo de se fazer o “Deus” do mundo ao qual fora destinado. Em verdade, esse desejo passa a ser a única coisa que dá significado para sua existência, levando-o a conquistar e a transformar incansavelmente o mundo à seu volta, segundo a sua própria vontade e a sua inteligência.

Esta, pode-se dizer, foi a primeira metamorfose do ser humano, quando ele adquiriu consciência de si mesmo e elevou-se de seu estado primitivo de criatura ingênua, ignorante e servil para um estado consciente  de sua individualidade e de sua capacidade de ser senhor de si e livre, mas também não tão livre assim, porque a sua capacidade de “afeição” não lhe fora retirada, e a afeição é como uma corda que amarra o coração ao coração do outro, fazendo com que se sinta o que não se quer sentir de bom e de mau, e que prende pelo bem ou pelo mal, e quem tem afeição em si desconhece o que é ser livre. E, assim o coração humano sermpre estaria ligado ao do seu criador e o de Deus ao dele, e por mais que quisessem se libertar um do outro, sempre estariam unidos. E, em razão única dessa afeição entre o ser humano e Deus e entre Deus e o ser humano, o último passou a lutar para transformar a si mesmo para aproximar a sua própria imagem daquela que faz de Deus, no desejo de libertar-se da condição humilhante e servil que lhe fora imposta. Por sua vez, é o próprio Deus que encarrega-se da orientação do ser humano para que esse objetivo seja alcançado por seu próprio mérito. De modo que a  história da metemorfose humana tem sua continuidade, mesmo que lentamente, mas sem jamais parar.

Assim, a segunda metamorfose humana deveu-se justamente ao povo sumério. Ela teve seu início por volta de 6.000 e 5.000 a.C., quando um povo de origem desconhecida assentou-se ao norte do golfo pérsico, na embocadura dos rios Tigres e Eufrades, e deu ao local o nome de “Ki-en-gi”, que significa Lugar dos Senhores Civilizados, e chamou a si mesmo de “povo da cabeça preta.” Quando esse povo foi invadido pelo povo semita Acádio (sec. III a. C.), originário da região da atual Síria, veio a chamar a esse povo pelo nome de “sumer” (sumério), cujo significado também se desconhece, porquanto que a linguagem usada pelos sumérios não pertence a nenhuma linguística conhecida, sendo esta inteiramente de peculiaridade suméria.

Quanto a questão da origem dos sumérios, em 1927, o arquelogista britânico Sir Leonard Wooley (1880-1960) identificou a cidade de Ur Kasdim (Ur dos Caldeus em hebráico) ­– a qual segundo a tradição dos textos sagrados hebráicos seria a cidade de nascimento do patriarca Abrãao –  com a cidade suméria de Ur. Realmente, provas arqueológicas da presença do povo semita caldeu foram encontradas na região comprovando a presença dos caldeus a partir de 850 a.C., apesar do nascimento de Abrãao ser presumido para 2.000 a.C., muito antes portanto disso. Ocorre que os sumérios no processo de sua civilização, por volta de 3.500 a.C., tiveram um marcante progresso no desenvolvimento agrícola, sendo responsáveis pela invenção do arado para o cultivo de cereais e criaram a cerâmica, disto partiram para grandes obras de engenharia com a construção de grandes edificações para o contrôle e aproveitamento das águas. Os conhecimentos de engenharia permitiram também que os sumérios contruissem de  templos e palácios a residências dando origem às suas cidades-estado com autonomia política e religiosa. Ora, os sumérios em suas obras de engenharia passaram a usar sinais para os cálculos matemáticos, que também passaram a ser empregados para a contabilidade do sofisticado sistema administrativo de seus governos. Em pouco tempo esses sinais usados para contagem numérica evoluiriam para sinais de uma escrita cuneiforme ideográfica – com o uso do símbolo de uma palavra conceito tal como ocorre com o chinês e o japonês –, grafados em tábuas de argila cozidas em forno. Isso permitia que o conhecimento humano antes limitado à tradição oral fosse pela primeira vez registrado e acumulado para que as futuras gerações o pudessem estudar.

Foi em 1872 que foram descobertos registros sumérios que confirmaram a ocorrência de um dilúvio na região, o qual também viria a ser confirmado na narrativa caldéia, ambas em muito assemelhadas a passagem biblíca do dilúvio enfrentado por Noé. Pesquisas do limo depositado nas ruínas de Ur, realizadas em 1950, por Sir Leoard Woolley , confirmaram as evidências desta catástrofe. Entretanto, o arqueólogo P.E. Cleator (Philip Ellaby) em seu livro “The Past in Pieces” (O Passado em Pedaços), publicado em Londres em 1957, arguiu: “A inundação não foi naturalmente, mais que um fenômeno local; contudo para os habitantes do vale Tigre-Eufrates os efeitos se afiguraram, sem dúvida, bastante calamitosos na época.” O que permite considerar que os sumérios era um povo sobrevivente da era pré-diluviana, cujo legado aos povos da era pós-diluviana seria o desenvolvimento da escrita fator determinante da segunda metamorfose humana.

O ser humano do momento que se fez capacitado para fazer registros de seus conhecimentos e legá-los às gerações futuras, também passou a estabelecer leis para a sociedade de forma a torná-la organizada. Assim, quando, em 1901, uma expedição francesa encontrou na cidade de Susa, de origem sumeriana, o famoso Código de Hamurabi ­– um dos primeiros códigos legais da história humana estabelecido pelo rei Hamurabi da Babilônia em 2.334 a.C, cujo mais famoso artigo legal é a lei de Talião (lex talionis) do “olho por olho e dente por dente”–, ficou de uma clareza que não permite constentação a importância da escrita para o desenvolvimento civilizatório da sociedade humana. Apesar disso, e dessa nova capacidade, o acesso a escrita era elitizado, só permitido às castas mais altas da sociedade, enquanto a grande maioria da população permanecia na mais completa ignorância. O conhecimento e a sabedoria eram guardados a sete chaves e só alguns escolhidos poderiam utilizá-lo, contudo seria por conta da afeição humana às coisas materiais e sua tendência nata de comerciar seus interesses, que, como os sumérios através da contabilidade e dos cálculos matemáticos, vários tipos de escrita seriam desenvolvidos, principalmente entre os comerciantes e se alastrariam mesmo entre as camadas mais pobres da populações. Mas, este seria um processo muito lento, porquanto manter a ignorância das massas provava-se útil para aqueles que estavam no poder, de forma a dominá-las e submetê-las.

Por sua vez deveu-se ao Egito a descoberta do papiro, uma espécie de papel primitivo feito de celulose, por volta de 2.500 a.C., o que permitiu pela primeira vez o registro da literatura popular e profana, geralmente composta de um número infinito de poesias, contos e canções e não tão somente registros das atividades religiosas e de documentos administrativos dos governos. Inicialmente a grafia nos longos rolos de papiro se deu com carvão vegetal, mas logo uma mistura de clara de ovo com pigmentos de plantas deu origem a primeira tinta, a qual logo seria mais aperfeiçoada ganhando as cores branco, preto, azul, vermelho, amarelo e verde tendo como liga uma goma, que permitiria a pintura dos afrescos da cidade de Dendera, em 2.000 a.C., dando início à arte da pintura. Com o passar dos anos e séculos o papiro foi sendo aperfeiçoado em vários tipos de qualidade, e apesar de sua fragilidade – susceptível às mudanças climáticas e não sendo muito resistente ao tempo – permaneceu em uso até o século XIX da nossa era.

O primeiro tributo ao acúmulo de conhecimento humano foi feito pelo rei  Nabucodonosor II (632 a.C. – 562 a.C), que mandou construir um acervo ao lado da escola do templo da Babilônia (região também sob influências da civilização suméria), com obras identificadas com cartelas semelhantes as em uso atualmente nos museus. O segundo foi o Templo das Musas (Museum) construído por Ptolomeu II Filadelfo (309 a.C. – 246 a. C.), sucessor do imperador macedônio Alexandre Magno, na cidade que este ergueu no Egito para estabelecer a sua corte, Alexandria.  O Templo das Musas, tornou-se mais conhecido como a Biblioteca da Alexandria que chegou a abrigar um acervo magnífico de obras da Antigidade, já que a proposta era reunir toda a documentação registrada da sabedoria humana e principalmente a da cultura helenica. Infelizmente, o grande general romano Julio Cesar, em seu desejo ardente por Cleópatra e pela conquista do Egito, por “acidente” incendiou a Biblioteca da Alexandria, em 48 a.C., e esta foi sem dúvida uma das grandiosas perdas dos arquivos de sabedoria da humanidade e outras maiores ainda viriam depois.

O "Tablet" Egípcio
Apesar disso, os romanos deram uma contribuição muito curiosa aos utensilíos usados para a escrita. Podemos atribuir aos romanos o uso “prático” da escrita na vida cotidiana e a disseminação da alfabetização e do uso da língua latina como elemento de homogenização do vasto Império Romano. Foi deles a invenção do “tábua de cera”, consistia numa tábua de madeira com um recipiente retangular onde se derramava a cera de abelha derretida, esperava secar e depois escrevia-se nela com um “stilus” um pedaço de pau apontado ou um pauzinho de metal pontiagudo. A tábua de cera servia para fazer contas, anotações, listas, mandar recados, anotar lembretes ou mandar ordens para as legiões durante as batalhas, depois de lido o texto a cera era derretida novamente e recolocada na tábua para ser novamente utilizada.

Como é possível observar na figura de um romano usando o seu “wax tablet”, quase temos a impressão que ele poderia estar usando um computador pessoal, hoje vemos tantas pessoas em qualquer lugar sentadas dessa mesma maneira fazendo a mesma coisa só que uma instrumentação de idéia semelhante mas tão distante, não só em tecnologia como em conhecimento. Contudo, em seu tempo os “wax tablets” era uma tecnologia tão desejada quanto estão sendo agora a nossa mania pelos nossos ultramodernos “tablets”! Porém, eles eram os humanos da segunda metamorfose e eles eram como  pioneiros lutando loucamente para romper com a ignorância da humanidade, quanto a nós, pode-se dizer que somos os herdeiros de suas conquistas.

Sem dúvida, os romanos pareciam ter conseguido conquistar o topo do mundo, mas como se diz quanto mais alto, maior queda. E o Império que parecia invencível se fez em pedaços de história quando as hordas bárbaras chegaram como  enxames de gafanhotos e começaram a destruir tudo o que viam pela frente. E para onde foram os inúmeros rolos de papiro que continham os conhecimentos conquistados tão duramente por gerações e gerações de seres humanos tão empenhados em se elevarem como deuses sobre a Terra? Para dentro das cavernas, mosteiros, castelos e fortificações; escondidos, trancados e desaparecidos, totalmente inalcançáveis e novamente a ignorância foi a grande vitoriosa e dividiu o mundo para melhor governar. 


sexta-feira, 13 de abril de 2012

XII - OS CAPITALISTAS E OS PAPAS


A palavra Capital com maior frequência tem sua origem relacionada à palavra da língua proto-Indo-Europeu kaput, mas parece ser mais adequado que ela advenha da prática romana de cobrança do tributo de capitação, denominado em latim segundo Cícero como Capita exigere, tributo este a ser pago por pessoa ou cabeça. Ora, de certo eram aqueles que na Idade Média captavam impostos, nobres e eclesiásticos, os donos do dinheiro, eram eles os únicos que detinham alguma forma de Capital, eram eles os capitalistas, aqueles que tinham muito dinheiro e propriedades, viviam tanto do dinheiro tomado com a arrecadação de impostos e taxas, como do lucro do emprego do capital que detinham. Talvez esse seja o conceito mais antigo e tradicional do Capital, e há um grande sentido nisso do momento que passou a haver um confronto crescente entre os capitalistas e os pagadores de taxas e impostos, um conflito que apesar da mudança ocorrida entre os personagens continua o mesmo até os dias de hoje, sendo uma das grandes questões do Capitalismo contemporâneo.

É inegável que o Grande Cisma do Ocidente foi ocasionado por uma questão política-econômica entre o papado e a França, o fim do cisma trouxe uma disputa de influência sobre o papado. Num primeiro momento os banqueiros florentinos e os mercadores venezianos ficaram senhores e donos dos rumos dos negócios papais, apoiaram o papa Martin V, que pertencia à poderosa família romana Colonna, que mandava e desmandava em Roma e tradicionalmente apoiava o papado. Depois, em 1431, veio o papa Eugenio IV, cuja mãe era da rica família de mercadores venezianos chamada Correr. Tudo teria corrido melhor para os florentinos e venezianos se Eugenio V não tivesse acordado com os cardeais que o elegeram que daria metade dos recebimentos da Igreja para eles, compromisso que não foi cumprido à risca, e não tivesse tomado violentas medidas contra o nepotismo de seu predecessor, que havia distribuído castelos e propriedades entre os numerosos membros da família Colonna. Em pouco tempo o papa se viu cercado de inimigos, a situação que se agravou ainda mais quando com o apoio do novo imperador romano-germânico, que coroara em 1433, conseguiu retomar o pleno poder papal sobre a Igreja, que estivera submetido à aprovação cardinalícia desde o Concílio de Constança. Logo no ano de 1434, uma insurreição republicana tomou Roma, obrigando Eugenio V se refugiar em Florença e Bolonha. Em seguida teve início uma campanha contra o papado promovida pelos cardeais. Entrementes o rei da França, Carlos VII, promulgou a Pragmática Sanção de Bourges no ano de 1438, que tornava necessário o consentimento real para promulgação dos decretos papais no território francês, dando independência à Igreja Gálica, enquanto no Sacro Império Romano Germânico a Dieta de Mains de 1339 retirava a maioria dos direitos papais sobre o império.

Alfonso V de Aragão, filho de Ferdinando I de Aragão, buscava reaver o reino de Nápoles, que fora perdido para os Anjou em 1417, assim arranjava um modo de tirar seu primo em segundo grau, René de Anjou do trono napolitano. No ano de 1439 será com seu apoio que os cardeais depuseram formalmente por heresia o papa Eugenio IV, elegendo para o seu lugar Amadeu II, duque de Savoy, que tomou o Felix V, novamente veio ocorrer um cisma papal, todavia o novo papa recebeu pouco reconhecimento.  Essa decisão indignou o cardeal Enea Silvio Piccolomni amigo de Eugenio V, que recusou o cardinalato recebido de Martinho V, após este fato o cardeal foi para a corte do imperador romano-germânico Frederico III de quem era aliado. Após seis meses de cerco à Nápoles, Alfonso conseguira afastar René de Anjou do trono de Nápoles. Tal oportunidade não deixou de ser aproveitada pela habilidade diplomática do ex-cardeal Enea, que em 1442 aconselhou Eugenio IV a se reconciliar com Alfonso V de Aragão, dando-lhe em troca o reconhecimento de sua justa reclamação ao trono de Nápoles. Foi assim que no ano de 1443, com o apoio de Alfonso, o papa Eugenio IV entrou triunfante em Roma após quase dez anos de exílio. Nascia assim a mais nova aliança entre o papado e os reinos espanhóis, uma aliança que prejudicial tanto aos florentinos como aos venezianos.

O ano de 1447 trouxe um novo papa, Nicolas V um italiano da região da Ligúria, que fora um dia tutor da família Albizzi. Outra vez Enea usou de seus dons habilidosos de diplomacia para promover um acordo entre Frederico III e o seu amigo Nicolas V (1448), logo depois negociou o casamento do imperador com Leonora de Portugal, filha de Eduardo I de Portugal (Dom Duarte), o qual era neto do nobre inglês João de Gaunt, e de Leonor de Castilha, irmã de Alfonso V de Aragão. O casamento ocorreu em 1452 em Roma, conjuntamente com a coroação de Frederico III como Imperador do Sacro Império Romano, sendo esta a última coroação de um imperador romano-germânico em Roma. No ano seguinte para desgosto do papa, que foi um dos primeiros humanistas, Constantinopla caiu nas mãos dos turcos otomanos. Para Nicolas V, um amante da cultura grega e grande divulgador de suas obras, a queda de Constantinopla foi como uma segunda morte para os grandiosos pensadores da antiguidade. Tal foi seu desgosto e desencanto com o mundo em que vivia, que passados dois anos veio a falecer.

O que de alguma maneira seria esperado, no ano de 1455, um diplomata que servia a Alfonso V de Aragão, e que se tornara cardeal após a reconciliação deste com o papa Eugenio IV, foi eleito como novo papa com o nome de Calisto III. Ele fez uma chamada para uma Cruzada a fim de recuperar Constantinopla das mãos dos turcos otomanos, mas não recebeu nenhuma resposta dos reis e dos príncipes europeus. Negou o cardinalato ao dedicado Enea Silvio Piccolomni em beneficio do sobrinho Rodrigo Borgia, que viria ser o corrupto papa Alexandre VI, fez outro sobrinho cardeal também, mas este não chegou ao papado. Calisto III era afamado entre seus pares como iletrado e ignorante, de sorte que não perdurou muito e morreu em 1458. A lembrança mais famosa do seu papado foi à passagem do cometa Halley no ano de 1456, que foi considerado na época um presságio de mau agouro.

Finalmente as circunstâncias favoreceram Enéas Piccolomni, que a despeito de não ser cardeal foi eleito papa, adotando o nome de Pio II. Sua diplomacia foi mais que necessária num período que as disputas eclodiam seguidamente: os napolitanos contra os aragonenses, os poloneses contra os teutônicos, os milaneses contra os genoveses e os venezianos contra os turcos. Neste último caso, os florentinos deram o cínico conselho ao papa de que ele deixasse que os dois lados se acabassem um ao outro. Em 1461, Pio II tentou entrara em acordo com Luís XI da França para que este abolisse as sanções à autoridade papal, mas como Luís XI queria o trono de Nápoles de volta para os Anjou o acordo não se realizou, pois Pio II fizera aliança com Ferdinando I de Nápoles, o qual foi mais conhecido como Don Ferrante, ele era filho natural de Alfonso V, falecido em 1558. Mais famoso pela peculiaridade dos aspectos de sua vida do que pelo próprio papado que exerceu, Pio II será sempre lembrado por seu versátil caráter que lhe permitiu estabelecer alianças que favoreceram a estabilidade da Igreja de Roma. Com sua morte em 1464 ficou evidente o seu papel relevante na condução da política de bastidores desse período, que contrastou com o medíocre pontificado de seu sucessor, o vaidoso veneziano Paulo II, sobrinho de Eugenio V, contudo, pode-se dizer a seu favor, que tentou abolir a prevalência do nepotismo e lutou contra a propina e o tráfico de influência que grassava nos cargos de dignidade da cúria, sua ação foi uma breve tentativa inglória de uma moralização da Igreja de Roma, que não era absolutamente desejada pela alta cúpula eclesiástica.

Também oriundo da Ligúria como Nicolas V, Francesco delle Rovere foi eleito papa em 1471, e tomou o nome de Sixtus IV, ele fora ministro geral da ordem dos Franciscanos em 1464, sendo feito cardeal por Paulo II três anos depois. Seu nepotismo se deu de imediato a sua subida ao trono de Pedro, nomeando os seus sobrinhos tanto da família Riario como da Delle Rovere cardeais. Ele era inimigo ferrenho dos Medici de Florença, e dirigiu seu rancor contra o jovem Lorenzo Medici, que governava Florença e os negócios da família desde 1469. Sixtus IV logo tomou como banqueiros papais a família Salviati, também inimiga dos Medici. Lorenzo ambicionava que a região de Imola se tornasse também protetorado de Florença, sabedor disso Sixtus IV financiado pela casa bancária dos Pazzi, aliada por parentesco aos Salviati, comprou o governador de Imola. Em retribuição o papa deu aos Pazzi um monopólio das minas de alumínio em Tolfa, o qual era de extrema necessidade para a indústria têxtil de Florença e davam rendimentos consideráveis.

Ajustado os acertos financeiros com o papado, os Pazzi e os Salviati puseram em prática am abril de 1478 um plano para assassinar Lorenzo e seu irmão Giuliano. Ao final do mês, ambos foram surpreendidos por ataque durante a missa na catedral de Florença. Giuliano foi apunhalado, enquanto ele se esvaiava em sangue até a morte no chão da catedral, Lorenzo conseguiu fugir para a segurança da sacristia. O golpe de Estado falhara. Os florentinos se indignaram contra os conspiradores, todos foram pegos e mortos pela turba, sem que Lorenzo pudesse impedir a violência. Posteriormente Lorenzo ordenou o confisco de todas propriedades dos Pazzi, proibindo a simples menção do nome da família em Florença. Os Salviati, apesar da estreita ligação com o papado não tiveram melhor destino.

Este episódio, que ficou conhecido como a Conspiração dos Pazzi, provocou o ódio de Sixtus IV que interditou Florença e proibiu as missas e comunhões, prontamente os florentinos excomungaram o papa, que em retaliação convocou o rei de Nápoles, Dom Ferrante, para que com seu exército marchasse contra Florença. Nenhum socorro veio de Milão nem Bolonha, tradicionais aliados florentinos, o que levou Lorenzo a viajar sozinho para Nápoles e se colocar nas mãos de Ferrante, onde ficou prisioneiro por três meses, durante o período em que negociou uma honrosa paz com Ferrante, que depois além de o libertar deu-lhe presentes. Esta peculiaridade deu ao Lorenzo uma renovada popularidade entre os florentinos, que vieram a lhe assegurar, com uma mudança constitucional, o aumento de seu poder.

Sixtus IV fracassara ao tentar colocar um de seus sobrinhos no lugar de Lorenzo Medici, mas tinha em vista outro intento colocar outro sobrinho no lugar do duque de Ferrara, para isso instigou os venezianos a atacarem o ducado em 1482, mas o combinado assalto foi impedido pela aliança de Scorza de Milão, Medici de Florença e Ferrante de Nápoles. Em recusa dos venezianos de atacar Ferrara, Sixtus IV interditou Veneza em 1483. Depois disto caiu o silêncio sobre o papado. Da passagem pelo papado de Sixtus IV ficou apenas a Capela Sistina por ele construída para lembrar aos curiosos a sua obscura figura, o mesmo não se pode dizer de Lorenzo Medici, cuja lembrança impregna cada canto de Florença até os dias de hoje, não deixando indiferente a quem a visite a presença perpétua de sua personalidade.

Lorenzo era um ávido patrono das artes e fascinado pela tecnologia. Ele trazia para sua corte os artistas e intelectuais de todos as partes da Itália, fez assim de Florença o maior centro cultural do Renascimento. Ele patrocinou artistas como Leonardo da Vinci, Donatello, Sandro Botticelli e Michelangelo Buonarroti, naturalmente seria impossível ele patrocinar sozinho tantos trabalhos, para tanto estimulou a patronage cultural por outros ricos florentinos. Lorenzo também começou a coleção de livros que veio a ser a Biblioteca Medici. Seus agentes salvaram e recuperaram um grande número de obras clássicas greco-romanas até então desconhecidas. Empregou um largo numero de calígrafos para copiarem esses livros, para que o conteúdo deles pudesse ser difundido através da Europa. Apoiou o desenvolvimento das idéias humanistas através do seu círculo de amigos estudiosos dos filósofos gregos, que tentavam reunir as idéias de Platão ao cristianismo. E a despeito do que foi dito e escrito sobre ele, Lorenzo era profundamente religioso, o que não impedia que ele amasse também a sabedoria sob a suas mais belas formas de expressão.

Nem sempre Lorenzo não teve muita sorte com os negócios bancários. Primeiro o a agência do banco em Bruges fez um alto empréstimo para Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, para ele fortalecer seus domínios em Flandres e Brabant, o duque morreu em 1476 sem pagar o empréstimo. O duque de Borgonha apoiava o rei inglês Eduardo IV, da casa de York, o qual também recebeu um vultuoso empréstimo para financiar seu exército na Guerra das Duas Rosas da agência de Londres, o rei morreu em 1483 e não pagou a soma devida. Também Luís XI da França pegou dinheiro com a agencia do banco de Paris para suas disputas com Carlos, o Temerário, morreu também em 1483 sem quitar seu débito com o Banco Medici. Mas, apesar destas faltas de pagamentos e a despeito das circunstâncias desfavoráveis proporcionadas pelo papado, Leonardo internacionalizou ainda mais o Banco Medici. Em 1485, em Florença tinha setenta funcionários, e agências espalhadas por Milão, Roma, Veneza, Genova, Ancona, Lion, Londres, Bruges, além de correspondentes em Lübeck, Germânia e mar Báltico. Em Londres seu agente podia comprar até 500 libras esterlinas em lã, o que era uma fortuna para época, mas não podia se engajar em seguros, nem em empréstimos para a realeza. O banco também praticava empréstimos para os proprietários de terra no tempo de colheita, para o pagamento de salários para os colhedores temporários, paro o aluguel de carroças e armazéns, atendendo as necessidades trazidas pelo fim do sistema feudal. O banco obtinha também um grande lucro na compra e venda de objetos de luxo, já que seus agentes que eram peritos nas belas artes, pinturas, esculturas, tapeçarias, jóias e etc.

Após Sixtus IV foi eleito como papa um genovês de nascença, mas que crescera na corte de Nápoles, chamava-se Giovanni Battista Cibo e tomou o nome de Inocêncio VIII quando se tornou papa em 1484. A maioria dos cardeais do novo papa era florentina, um alívio para os inimigos de Sixtus IV, sobretudo para Lorenzo Medici. Inocêncio VIII adotou uma política sem confrontos desnecessários com os poderosos europeus. Em 1486 declarou Henrique Tudor, que havia vencido a Guerra das Duas Rosas e assumido o trono inglês no ano anterior como Henrique VII, com direito à coroa inglesa por direito de conquista, de herança e de escolha popular. Em relação à Espanha, que em 1482 tivera os excessos punidos da Inquisição por Sixtus IV, sendo que a Inquisição fora por ele mesmo autorizada em atenção ao pedido da rainha Isabella de Castilha em 1478, agora teria com Inocêncio VIII um aliado, que indicaria em 1487 como inquisidor o rigoroso dominicano Tomás de Torquemada, que escreveria uma das mais negras páginas da História. Com a vitória sobre os mouros com a queda de Granada em janeiro de 1492, os reis espanhóis Fernando e Isabel enviaram ao papa uma centena de finos escravos mouros, que Inocêncio VIII distribuiu entre a cúria e os amigos, e deu a Fernando II de Aragão o epíteto de “Majestade Católica”.  

Lorenzo Medici acompanhara com interesse o projeto de navegação do genovês Cristóvão Colombo, quando o rei João II de Portugal declinou de financiar o projeto em questão em 1485, e Colombo continuou procurando fundos para a realização de sua idéia, a notícia chegara a Lorenzo, que mandou investigar a possibilidade do financiamento do projeto reverter em bons lucros para o banco tendo em vista a ampliação do mercado comercial de Florença e porque temia que Portugal, Espanha e Nápoles ganhassem uma margem extremamente vantajosa no comércio europeu através do desenvolvimento de suas atividades náuticas. Sua atitude, todavia, foi de extrema cautela, em razão das recentes perdas sofridas em 1483, que na permitia ao banco fazer negócios que não fossem comprovadamente lucrativos. Lorenzo era sem dúvida um homem de visão, mas não viveu para comprovar sua intuição. Ao final de seus dias adoentado na cama onde morreria, apelou para o dominicano Girolamo Savonarola, superior do convento de São Marcos, que lhe desse a absolvição, de severa moralidade Savonarola condenou sem piedade o moribundo. Lorenzo faleceu em abril de 1492, seis meses antes da chegada de Cristóvão Colombo às Américas, cujo projeto fora financiado pela casa bancária genovesa Doria, representada pelo seu agente residente em Sevilha, Francisco Doria. Foi seguido na morte por Inocêncio VIII, que morreu em julho daquele ano, deixando numerosos filhos, que lhe valeu o título dado pelo povo de “pai de Roma”.

Lorenzo foi sucedido pelo seu arrogante filho mais velho Pedro di Lorenzo de’Medici, e Inocêncio pelo corrupto Rodrigo Borgia, que assumiu o papado com o nome de Alexandre VI. Nem um, nem outro prestavam, um trouxe desgraçou a dinastia Medici e jogou Florença no caos, o outro lançou a lama da imoralidade e corrupção sobre a Igreja de Roma.

Alexandre VII servira a cúria por cinco papados, durante esse tempo suas duas grandes paixões, ouro e mulheres, ficaram notórias, o que lhe valeu sérias reprimendas do papa Pio II. Quando Inocêncio VIII faleceu, três eram os candidatos ao papado: Ascanio Sforza de Milão, Giuliano delle Rovere, e ele. Imensas somas de propinas foram dadas, Borgia comprou um largo número de votos, inclusive o de Sforza, seu inimigo. Por sua vez Fernando II de Aragão, fez dar para trás a candidatura de Giuliano delle Rovere.Inicialmente sua justa administração e seu governo metódico e ordeiro fez um satisfatório contraste com a anarquia anterior, mas não demorou muito a dar vazões às suas paixões e a dar dotações a parentes e amigos às expensas da Igreja. Em 1493, Don Ferrante, rei de Nápoles se aliou com Florença, Milão e Veneza contra o papa, que por sua vez se preparou para invadir Nápoles, a guerra só não aconteceu por intervenção do embaixador espanhol de Fernando II de Aragão, por conta disso Alexandre VII deu o desejado titulo das novas terras americanas tomadas pelos espanhóis, em maio de 1493 o papa também assinou a bula Inter caetera pela qual foi dada uma autorização exclusiva aos monarcas de Portugal e Espanha para atuarem nas navegações em detrimento dos outros monarcas europeus, assim determinou a área de atuação dos envolvidos, a influência de Fernando II excluiu Portugal da Ásia, tal disposição foi posteriormente alterada pelo Tratado das Tordesilhas.

Nova crise surgiu no horizonte do papado após a morte de Don Ferrante em janeiro de 1494, quando seu filho Alfonso, Duque da Calábria, por direito hereditário passou a ocupar o trono do reino de Nápoles. Não demorou e Carlos VIII da França, filho de Luís XI, fez a formal reclamação do trono de Nápoles, porquanto Don Ferrante fora filho natural de Alfonso V de Aragão, logo seu filho tinha menos direito ao trono que um descendente direto da linhagem Anjou. Então, recomeçou a velha disputa de Nápoles.

Por conta de uma cruzada contra os turcos, Alexandre VII autorizou que o rei francês passasse por Roma, sem mencionar Nápoles. Charles VIII cruzou os Alpes, nas proximidades de Milão encontrou-se com o Ludovico Sforza, o Mouro, que lhe oferecera apoio em sua empreitada de tomar Nápoles, em troca da recuperação do trono de Milão do qual havia sido deposto pelo sobrinho. Após acertar a situação em Milão, Carlos VIII precisaria passar pela Toscana, pois seria um bom lugar para as tropas e sua linha de comunicação. Pedro di Lorenzo de’Medici, como novo governante em Florença decidiu manter a neutralidade, o que não foi aceito pelo rei francês que invadiu a Toscana. Pedro tentou formar uma resistência, mas não recebeu apoio dos florentinos que estavam muito influenciados por Savonarola, até seus primos desertaram para o lado de Carlos VIII. Rapidamente Pedro mudou de decisão, dando permissão para entrada das tropas francesas em Florença e atendo todas as necessidades e pedidos de Carlos VIII, mas fez isso sem negociar termos favoráveis a Florença, por conta disso os florentinos ficaram furiosos e depuseram Pedro, em seguida a turba pilhou o palácio da família, obrigando que fugissem para o exílio. Imediatamente após a saída dos Medici de Florença, Girolamo Savonarola se apoderou do poder para estabelecer um governo teocrático e de extremismos morais, sendo ele o que lucrou acima de todos com a grave situação armada pelo rei francês.

Apavorado com a invasão dos franceses o papa Alexandre VI reconheceu Alfonso da Calábria como rei de Nápoles, concluindo uma aliança com ele em troca de várias propriedades para seus filhos Lucrecia e Cesare Borgia. Alfonso apesar de atacar Milão e cercar Genova falha em seu propósito de expulsar os franceses da Itália. No último dia do ano de 1494, Charles VIII entrou em Roma com suas tropas e cardeais da facção francesa. Alexandre VI teme ser deposto pelo rei francês, então negocia que seu filho Cesare o acompanhará até Nápoles para que ele tome posse do reino. Alfonso da Calábria escapa abdicando o trono para seu filho Fernando II de Nápoles, mas este foge também e o reino foi facilmente conquistado por Carlos VIII.

Em 1497, Savonarola, bêbado de seu próprio poder, excomungou o papa Alexandre VI por sua devassa moral. A ousadia do dominicano foi punida pelo papa, em 1498, Savonarola foi preso e enforcado e queimado simultaneamente no mesmo local e maneira que ele condenou a outros. Florença perdia assim a sua polaridade, que dividira os florentinos em duas facções, tendo de um lado os partidários do esplendor apaixonado de Lorenzo Medici e de outro o fervoroso moralismo de Savonarola, doravante seria preciso encontrar um novo caminho, tendo inicio de uma política de restauração democrática. É a partir desde momento que a figura de Niccollò Machiavelli ganhou maior visualização no cenário político florentino. Nascido no sei de uma antiga e nobre família de Florença, todavia despojada de fortuna, esta condição que o integrava ao limitado patriciado da cidade permitiu que como seus parentes ocupasse um cargo público e participasse das querelas políticas. Em sua juventude ao tempo de Lorenzo Medici teve uma esmerada educação e adquiriu a indispensável cultura humanista própria da elite de seu tempo. Já estava no serviço público quando foi testemunha da queda da dinastia Medici, assim como ele acompanhou de perto o sonho delirante de Savonarola e sua posterior tragédia e ruína. A partir deste momento Machiavelli foi promovido como chefe da chancelaria dos “Dez”, tendo a seu encargo os assuntos militares e de política externa. Durante 15 anos, ele dirigiu ele os negócios diplomáticos, parte passou no serviço interno, parte foi encarregado de missões externas visitando várias cortes, entre elas do papado, de Milão, da França e do Sacro Império Romano Germânico.

Foi neste período da ruína de Savonarola que se deu o escândalo da filha de Alexandre IV.  Lucrecia fora casada com Giovanni Sforza, e que ao final do complicado processo de anulação do casamento, ela ficou misteriosamente grávida, mesmo estando num convento e não tendo consumado seu casamento com Giovanni em 1497. Este a acusa de incesto com o pai e com o irmão. Alexandre VI dá o dote de Lucrecia a Giovanni e este assina uma declaração de impotência em 1498. Como Cesare era cardeal e não podia casar com a filha de Frederico IV de Nápoles, irmão do falecido Alfonso II, o papa fez com que ela casasse com Alfonso, duque de Bisceglie, filho natural de Alfonso II, que contava com apenas dezessete anos. Todavia, após o nascimento da criança, chamada de Giovanni, o novo marido de Lucrecia teria uma breve vida. Cesare o assassinaria em 1500, com o objetivo de deixar Lucrecia livre para um novo casamento, desta vez com Alfonso, Duque de Ferrara, a fim de favorecer os seus interesses de conquista da Itália central.

Ao final do ano de 1498, Cesare depois de renunciar ao cardinalato foi mandado em missão à França como portador da bula papal da anulação do casamento do novo rei francês Luis XII, sobrinho de Carlos VII, cujos filhos não lhe sobreviveram. Luís XII queria a anulação de seu casamento com Joana, filha de Luís XI para desposar Ana d Bretanha, a viúva de Carlos VIII, a fim de impedir que o Ducado d a Bretanha fosse subtraído à França, em troca do consentimento papal Cesare obteve o ducado de Valentinois, o qual lhe deu o titulo de Duque Valentino, mais a promessa de ajuda material do rei francês para sua ambição de subjugar os principados feudais da Romagna. Em meio a estas negociações Cesare se casou com uma princesa de Navarra, da casa de Albret. O reino de Navarra, que no século XI fizera parte da Espanha foi unido à França no século XIII, e seu território era muito ambicionado por Fernando II de Aragão, que viria tomar a força parte dele, em 1512.

Alexandre IV esperava que a sua aliança com Luís XII fosse mais proveitosa do que a que tivera com Carlos VIII, e para dar uma espicaçada na Espanha e em Milão assinou sua aliança com a França em janeiro de 1499, à qual se juntou também Veneza. No outono Luís estava na Itália e expulsara Ludovico Sforza de Milão, para total satisfação prematura de Alexandre IV, porquanto os franceses foram expulsos de Milão e Sforza retomou seu trono logo no inicio de 1500.

O ano do jubileu de 1500 daria lugar aa mais questionáveis atitudes do papa Alexandre IV. Com o jubileu uma multidão de peregrinos se dirigiu a Roma de todas as partes do mundo trazendo rios de dinheiro para a compra de indulgências, que davam o perdão dos pecados e garantia um lugar certo no Paraíso, um pequeno golpe de estelionato semelhante a vender um terreno na Lua. Não satisfeito com o lucro das indulgências, Alexandre IV criou vinte novos cargos de cardinalato recebendo uma verdadeira fortuna de cada cardeal pelo posto. Com isso Alexandre estava habilitado a fornecer fundos para as empresas de seu filho Cesare, que era também o comandante-chefe do exército papal. A retomada de Milão em abril fortaleceu a posição papal, em conseqüência, Cesare no comando de um exército de dez mil homens marchou para conquistar o centro da Itália no outono daquele ano, cumprindo sua parte no plano combinado com os aliados franceses e venezianos. 

Com violência e brutalidade Cesare foi depondo os governantes locais da Romagna. No inicio do inverno Cesare começou a operar nas imediações de Florença. E, como a República de Florença desejava manter-se a par das intenções do filho do papa, Machiavelli correu para o acampamento dele. Cesare, entretanto, exigiu para não atacar Florença uma “aliança” ou um tributo em ouro. Para dar continuidade a negociação, Machiavelli teve que acompanhar Cesare de uma cidade a outra conquistada, a convivência acabou por desenvolver uma simpatia recíproca entre os dois homens. Cesare apreciava a aguda inteligência do visitante e suas idéias administrativas, enquanto Machiavelli ficava fascinado pelos planos megalomaníacos de Cesare. Ao final Florença não pagou o tributo exigido e Machiavelli se tornou administrador dos novos domínios de Cesare. Por ocasião do retorno de Cesare a Roma, seu pai o fez de Duque da Romagna, em junho de 1501.

Com o sucesso de Cesare em sua empreitada, Luís XII fica mais determinado em obter seu desejado território do reino de Nápoles. Naquele mesmo de junho, o papa concluiu um tratado com Fernando II de Aragão, relativo à divisão do reino de Nápoles, a fim de atender as reivindicações de Luís XII, deste modo a Campânia, Ambruzzi e a cidade de Nápoles ficaram para França e a Apulia e Calábria para a Espanha. Luís XII então conduziu seu exército para tomar posse de seus novos territórios no que foi acompanhado por Alexandre IV, o qual deixou sua filha natural Lucrecia como regente durante sua ausência, oferecendo com isso um assombroso espetáculo para a cristandade.

Em 1502, Pedro Soderini foi eleito governante vitalício de Florença. Soderini adotou uma inteligente política interna de fortalecimento do Estado florentino, introduziu uma milícia nacional em lugar das tropas mercenárias. Os mercenários tinham surgido ao fim das cruzadas, quando a maneira do que ocorrera com os teutônicos, que foram servir aos reis da Hungria e da Polônia. Nem sempre os Estados podiam manter forças militares de prontidão então passaram a contratar tropas de cavaleiros. Ao final dos períodos de conflito, quando homens e armas não eram mais usadas pos seus respectivos governos, os veteranos a procura de novas formas de empregarem suas habilidades passaram a formar companhias mercenárias. A Companhia dos Lanceiros Livres possuía homens que eram exímios em formas de combate especializado, tal prática exigia longos períodos de treinamento, o que não era viável para uma milícia mobilizada. A mais famosa dessas companhias de elite foi constituída pelos mercenários suíços, cujo sucesso bélico lhes renderia o titulo de invencíveis. Todavia, o uso de tropas mercenárias profissionais arrefecia o espírito patriótico, tendo em vista este aspecto foi que Soderini tomou a decisão de restabelecer uma força militar florentina.  Quanto à política externa, a gratidão de Soderini ao apoio da França deu um caráter de postulado político à ligação entre Florença e a França, o que marcou um aspecto de fraqueza da sua política externa.

Alexandre VII subitamente começou a sofrer de desordem mental, fato que precedeu a sua morte em 1503. Apesar de ser imensamente capaz como general e estadista, Cesare não tinha nenhum poder sem a continuidade do patrocínio papal. Severa pressão foi feita para que ele não estivesse presente em Roma por ocasião do Conclave, o que não seria mesmo possível, pois por ocasião da morte de seu pai Cesare estava gravemente doente. A decisão da eleição de Pio III, sobrinho do diplomático Pio II, transcorreu tranqüilamente sem pressões. Suas primeiras providências foram dar inicio a uma reforma do papado e mandar prender Cesare Borgia, mas vinte e seis após ter assumido o pontificado veio a falecer.

Por ocasião do novo conclave, Machiavelli estava lá por parte de Florença provavelmente, mas também seu mais novo amigo, Cesare Borgia estava. Cesare tentava convencer os cardeais à não elegeram o cardeal Giuliano delle Rovere, e dizia ele que novos favores podiam fazer esquecer velhas injúrias, mas desta vez ele se enganou. Rovere foi eleito e assumiu o papo como Julio II, de imediato o novo papa mandou buscar e prender Cesare. Ele conseguiu se exilar na Espanha, onde naturalmente também foi preso, mas, em 1506, ele conseguiu escapar da prisão espanhola e juntou-se ao seu cunhado Jean d’Albret de Navarra. Serviu na força militar de Navarra e veio a morrer em 1507, no cerco a Viena, na Áustria, com a idade de trinta e um anos. Enquanto isso no ano de 1506, Machiavelli era mandado por Julio II em missão para investigar se havia uma circunstância favorável para uma possível atividade papal contra a cidade Bolonha.

Sua curiosidade natural fazia de Machiavelli um espião perfeito, e seus juízos usualmente se mostravam fantasticamente corretos. Em serviço, seus olhos e ouvidos eram por demais atentos. Achava muito natural, por exemplo, postar-se à beira da estrada e contar as bestas de carga numa coluna inimiga. Era capaz de abordar qualquer pessoa, do príncipe ao vagabundo. O imperador romano-germânico Maximiliano, que exigira de Florença uma contribuição para a campanha na Itália de altíssimo valor, ficou estupefato quando Machiavelli, recém-chegado para acordar as negociações, ofereceu menos de um milésimo do valor pedido. Depois de muito regatear, o imperador aceitou um acordo muito mais próximo da modesta oferta florentina do que seu próprio e imoderado valor.

Julio II se revelaria violento em sua política papal, não é de admirar, portanto, que durante o seu papado os famosos mercenários tenham fundado a Guarda Suíça, com a ordem especifica de providenciar um constante centro de soldados de elite para proteger o papa. A data oficial da fundação foi 21 de janeiro de 1506
   
As habilidades e ambições de Julio II eram mais régias e militares do que qualquer senso eclesiástico. Estava mais preocupado com a própria fama como membro da família Rovere do que para o progresso da influência e autoridade da Igreja. Seu destemido espírito, sua maestria para estratagemas políticos e sua indiferença moral aos acontecimentos muito favoreceram seus planos em 1508. Ele foi muito ardiloso em concluir com Luís XII da França, mais o imperador Maximiliano e Ferdinando II de Aragão a famosa Liga de Cambraia contra a República de Veneza. Passado apenas um ano Veneza praticamente perdeu em uma única batalha seu domínio sobre a Itália e tudo o que construíra em oitocentos anos. Mas, nem o rei da França, nem o imperador ficaram satisfeitos com os efeitos das meras propostas feitas pelo papa, o qual achava necessário entrar em uma combinação com os venezianos para defender a si mesmo, porquanto imediatamente a derrota reuniu seus aliados contra seus adversários. Em 1510 os venezianos fizeram um estratégico ato de humilde submissão e foram absolvidos por Julio II, e em pouco tempo depois disso a França foi colocado sob interdição papal. Julio então empreendeu em fazer a Santa Liga com Fernando II de Aragão e com os venezianos contra a França, à qual se juntaram Henrique VIII da Inglaterra e o imperador Maximiliano. Todavia mesmo abandonado por seus antigos aliados Luís XII conseguiu resistir bravamente no primeiro momento, mas depois de 1512 sua situação enfraqueceu deveras, sendo obrigado a sair da Itália no ano seguinte, tendo também que fazer frente à invasão de suas fronteiras pelos espanhóis, suíços, ingleses e germânicos, o obrigando a combater em quatro frentes de batalha e, se não fosse pela morte oportuna de Julio II, a França teria sucumbido.

A política externa florentina que fazia da aliança com a França um postulado, estava desde 1511 ameaçada, quando a Santa Liga combateu a França com assistência dos mercenários suíços, honrados como guarda papal, colocaram a França fora da Itália, por causa desta situação a política até então ditada em Florença foi esquecida e os florentinos fizeram seu pedido de submissão ao papa Julio II, aceitando todos os seus termos, um deles era que os Medici deviam ser restaurados no governo de Florença. No primeiro dia de setembro de 1512, com o apoio do exército espanhol de Fernando II de Aragão, o filho caçula de Lorenzo Medici, retornou a Florença. Então, Giuliano depôs Soderini e ordenou o seu exílio.

Machiavelli e seus amigos naturalmente com a mudança de poder foram expurgados da administração pública. Cidadãos foram presos indiscriminadamente, sob a acusação de conspiração contra os Medici, e o próprio Machiavelli passou três semanas no calabouço, onde foi torturado. Com a morte do papa Julio II em fevereiro 1513, foi eleito para o papado Giovanni di Lorenzo de’Medici, que assumiu o cargo no dia dez de março como Leão X. Logo após no mesmo mês uma anistia esvaziou as prisões de Florença e Machiavel se viu livre novamente. Mas, estava desempregado e isto lhe era insuportável, sintia falta do agito político como quem sentia falta do ar para respirar. “Os fados decretaram que nada sabendo da manufatura de sedas, nem dos negócios, nem dos lucros e perdas, eu tenho que falar de política, e, a menos que faça um voto de silêncio, preciso discutir sobre ela”, escreveu ele em seu desabafo sentido.

De sorte que uma herança familiar lhe permitiu instalar a si e sua família em uma casinha de pedra (ainda existente e de propriedade de um seu descendente) na antiga fazenda Machiavelli, a onze quilômetros ao sul de Florença. Ali ele escreveu sua obra mais afamada O Príncipe, durante o ano de 1513, dedicada a Lorenzo, filho de Piero di Lorenzo de’Medici. Uma obra que parece reunir os perfis de vários príncipes que bem conheceu, encontra-se no livro algo de Lorenzo Médici, e também de Cesare Borgia, de Fernando II de Aragão, de Carlos VIII e Luís XII da França e do imperador Maximiliano. Com o conhecimento dos fatos históricos aqui reunidos ler O Príncipe é um prazer maior, pois permite descobrir a aguda analisa da visão de seu tempo de Machiavelli. Ele considerava a História a maior mestra dos homens, em seus Discursos pesquisou e analisou a vida e morte das Nações, extraindo do que encontrou e viveu um moderno conceito de Estado como uma unidade dinâmica.  O “pecado” de Machiavelli, que a posteridade o sopesou como demoníaco, foi ter exposto as velhas regras do jogo político em termos realísticos. Se a alguns a sua rudez ainda choca, para outros a sua coragem de revelar a verdade é motivo de ovação, e o saúdam como pai da ciência política.

Depois de passado muito tempo, finalmente ele ganhou a confiança dos Medici, mas estes não lhe deram o serviço publico que desejara tão apaixonadamente, por suas andanças do passado, este lhe continuaria vetado. Por uma quantia modesta lhe pediram para escrever a história de Florença, tarefa que o absorveria de 1520 a 1525. Quando em 1527, as tropas imperiais de Carlos V encorajaram Florença a expulsar os Medici, apesar de seu antigo cargo estar disponível ninguém o convidou a ocupar sua velha escrivaninha, morreu de desgosto um mês após a fundação do novo Estado. Aquilo que Machiavelli observava tão bem nos outros, não via na própria vida, não aplicara seu conhecimento para seu próprio progresso pessoal, as ligações que estabeleceu sempre se mostraram frágeis, fora de lugar e do momento apropriado. Mais uma vitima de suas necessidades do que propriamente das circunstâncias, seus encontros e desencontros fizeram de seu destino uma extraordinária fatalidade, mas foram exatamente estes disparates paradoxais de sua vivência que fizeram de Machiavelli quem ele foi e consagraram o seu nome.

Quanto aos Medici apesar da perda temporária do controle de Florença por algum tempo, isto não lhes faria diferença, porquanto fariam quatro papas no século XVI, dois deles filhos de Lorenzo Medici, Leão XI (1513-1521) e Clemente VII (1523-1534), este último filho do irmão de Lorenzo falecido no complô e adotado por ele. Os outros foram Pio IV (1559-1565) e Leão XI, papa por apenas um mês em 1605. Os Medici fizeram também duas rainhas na França, que deu à família uma poderosa rede de influência na Europa, a qual seus descendentes usufruem até os dias de hoje, porquanto o nome Medici se tornou uma legenda de poder e dinheiro, que mesmo com a ausência da fortuna do passado, à simples menção do nome da família Medici é capaz de abrir qualquer porta, por mais exclusiva que seja, da fechada elite contemporânea européia.