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terça-feira, 17 de abril de 2012

XIII – O FIM DA IGNORÂNCIA E A METAMORFOSE HUMANA


Nos últimos capítulos nós tivemos a oportunidade de com exemplos reais do passado verificar que o ser humano é um tecelão de relações humanas, tecendo assim o seu tecido social como se fosse uma belíssima tapeçaria. Nós pudemos ver as intrigantes relações que aproximam e unem aqueles poucos que possuem o poder para decidir os destinos da maioria, e que esse tipo de comportamento não é de modo nenhum um estado de constante “conspiração” para ganhar-se cada vez mais poder. Poder-se-ia dizer mais corretamente que seria um constante “jogo de interesses”, onde uma das partes perderá e outra ganhará. Um jogo que alternará vancedores e perdedores, num exercício constante do intelecto humano em que sempre vencerá o melhor: aquele que tiver mais engenhosidade e criatividade para elaborar táticas e estratégias para superar as dificuldades e os obstáculos existentes entre ele e o seu objetivo. Pois é desse constante conflito de forças antagônicas que o progresso humano se dá e dele é dependente. Se o conflito não existisse haveria um acomodamento decorrente da ausência de desafios para serem vencidos. O maior estímulo para essa atividade de tecelão é a “troca de interesses” entre as partes envolvidas – seja tanto por necessidade, ou benefício advindo dessa ação, quanto pelo desejo de posse – porquanto sempre estará em foco algo que seja valorizado que mereça ser “negociado” ou mesmo “tomado”, se uma das partes resistir à negociação. Da troca de interesses origina-se todo um  comportamento particular ao ser humano, o tornando um negociante nato em seu cotidiano, já que em qualquer aspecto que seja de seus relacionamentos ele sempre estará negociando uma coisa em troca de outra. Daí a razão de ser daquele sábio dito popular: “Nada é de graça neste mundo.”

Essa característica humana é tão óbvia e paupável que foi consagrada na milenar tradição histórica biblíca que tem por personagens Deus, Adão, Eva, a serpente e a maçã.

Está escrito no Livro do Gênesis:

“O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. Deu-lhe este preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia que o comeres, morrerás indubitavelmente.” (Gen. 2:15)

Formidável! Então, o Homem recebeu de Deus todos os tesouros do mundo sem ônus, grátis! Só para ser guardião do tesouro e cultivá-lo, sem maiores encargos, também só uma coisa não podia fazer: comer  do fruto da árvore do conhecimento e da sabedoria., que definitivamente não deveria ser comido pois era venenoso e o mataria. E, sem dúvida Deus não mentira para o Homem. Está aí um contrato de "trabalho" que parece em tudo vantajoso.

A história dá a entender que o Homem viveu sozinho por um bom tempo dando nome a todas às coisas e criaturas vivas que estavam no Éden, até que um dia tendo findado sua atividade de dar nomes a tudo que foi criado por Deus para ele guardar e cuidar, ele começou a ficar entediado, pois “não encontrava uma ajuda que lhe fosse adequada.” Mais certo seria dizer que não encontrava uma companhia que o complementasse adequadamente, já que o Homem for a criado por Deus com a capacidade de afeiçoar-se ao mundo que estava à sua volta,  pois sem esta capacidade de “afeição” ele não seria capaz de estabelecer qualquer vínculo intelectual ou emocional com qualquer as coisas à volta dele, o que o impediria de reconhecer o distinguir o “valor” entre as coisas de seu mundo, logo sua capacidade de “guardião” seria nula. Sem a capacidade de afeição ele não teria também a capacidade de “empatia” tão importantes para ele poder identificar as “necessidades” dos seres viventes do seu mundo que permitisse a ele cumprir a tarefa de cultivar e cuidar deles. O problema é que justo por conta da “afeição” e da decorrente “empatia”” o Homem logo viu que todos os bichos eram casais de seres assemelhados, macho e fêmea, e todos assim tinham companhia, menos ele, que não encontrava nenhum outro ser que lhe fosse assemelhado para ter por companhia. Portanto seria normal ao Homem que se sentisse sozinho e entediado, e isso o fizesse de certa forma infeliz. Vendo isso Deus que também tinha afeição por suas criaturas agiu rápido e providenciou uma companhia para ele: a Mulher.

E a história podia terminar neste ponto, com o Homem e a Mulher sendo “felizes para sempre” vivendo no paraíso do Éden que Deus dera para eles, em sua mais que perfeita “ignorância,” total ingenuidade e falta de consciência do próprio ser, tal qual crianças recém-nascidas. Infelizmente, o Gênesis apresenta um hiato, uma censura por assim dizer, o motivo pelo qual Deus dentre as tantas criaturas que ele mesmo criou teria criado uma que seria a encarnação da intriga: a serpente.

O texto apócrifo “A Hipóstase dos Arcontes (II,4), integrante dos textos de Hag Hammadi, descobertos em outubro de 1946, joga um pouco de luz sobre esse mistério; do que teria ocorrido para que o Homem e a Mulher fossem condenados por Deus a serem “infelizes para sempre” num mundo infernal. Com base neste texto pode-se imaginar que a Mulher criada por Deus de uma costela do Homem era de uma beleza tão indiscritível, tão pungente que parecia ser uma deusa e por isso teria despertado o desejo do mais belo e inteligente  dos arcontes (deuses ou arcanjos) de Deus, chamado Lúcifer, o qual queria aproximar da Mulher, ter contato com ela e conhecê-la intimamente. Mas, Deus o proibiu porque ele a fizera para o Homem e não poderia ser maculada pelos arcontes.

A partir desse momento, Lúcifer se colocou contra o Homem e se fez seu acusador, querendo provar que a criação do Homem era uma ameaça aos seres do Céu e ao próprio Deus, pois não seria capaz de ser devotado, obediente e servir à Deus como seus seres saídos dele o faziam. E, assim, ao melhor estilo de “cavalo de Tróia,” usando da sagacidade e do engano Lúcifer tomou a forma de uma serpente e foi colocar a Mulher à prova, para que ela caísse em tentação e desobedecesse à Deus e depois levasse o Homem também a fazer o mesmo.

“A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”A mulher respondeu-lhe:”Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: “Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais”. – “Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que, no dia que dele comeres, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses conhecedores do bem e do mal” A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para a inteligência, tomou dele, comeu e o apresentou ao seu marido, que o comeu igualmente.” (Gên. 3: 1-6)

Ora, o Homem e a Mulher conheciam a Deus e suas hostes celetiais  mas não tinham consciência que eram diferentes deles, até que Lúcifer na forma de serpente contou para a Mulher que ela não era como os deuses, pois não tinha “inteligência,” mas poderia ser como eles e despertou nela o desejo de ser como eles, o que a levou a comer do fruto proibido. Por isso está escrito no Gênesis: “O Senhor Deus disse: “Eis que o Homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois cuidemos que ele não estenda sua mão e tome também do fruto da árvore da vida, e o coma e viva eternamente.” (Gên. 3:22)

Assim, Lucífer conseguiu seu intento, ao promover a primeira “troca de interesses” da história humana, seduzindo a Mulher a comer de uma fruta para em troca se tornar uma “deusa”, e tendo a Mulher aberto sua “inteligência” decidiu que seria mais benéfico para ela que seu companheiro também tivesse a sua inteligência aberta, do que mantê-lo no estado original que fora criado por Deus, para que assim fossem iguais e permanecessem semlhantes. Foi assim, em razão do novo conhecimento adquirido pela Mulher, que permitia-lhe discernir entre o bem e o mal, que ela decidiu que o Homem deveria ser elevado de seu estado de ignorância, porque considerou isso um “bem” e não um “mal.” Por razão disso a Mulher  convenceu o Homem a comer do fruto proibido também. Porém, o que a Mulher não considerou foi que Deus exigia devoção, servidão e, sobretudo, obediência de todos, fossem saídos dele ou criados por ele, e que o ato da desobediência poderia ter consequências inesperadas.

Deus não poderia relevar a desobediência do Homem e da Mulher porque isso seria uma ameaça à ordem e à paz do Céu e à sua própria autoridade, e poderia levar a uma rebelião dos arcontes contra, assim Deus repreendeu não só ao Homem e a Mulher como também a Lúcifer, expulsando-os do Éden. Lúcifer foi o primeiro a ser punido por Deus, não só foi expulso do Céu como foi condenado a viver na mesma terra que o Homem e a Mulher, assim como colocou o ódio entre ele e a Mulher. Porém, Deus  paradoxalmente, os uniu numa relação de disputa, dando poder à Mulher para ferir a inteligência de Lúcifer e a Lúcifer o poder de deter o progresso do uso da inteligência da Mulher (“Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás no calcanhar” Gên. 3:15 ), e assim Lúcifer foi lançado à mesma terra em que o Homem e a Mulher viveriam como a criatura mais maldita entre todas as criaturas e tomou o nome de Satanás (ou Satan, em hebraico), que quer dizer o opositor (adversário ou acusador), mas Deus não lhe tirou seus poderes sobrenturais.  O castigo que Deus destinou à mulher vinculou-se à limitação de sua própria autorealização que passaria a ser impregnada de sofrimento e à sua submissão intelectual e física ao Homem, decorrente de seu próprio desejo por ele, afinal fora por seu desejo pelo companheiro que a Mulher decidira abrir-lhe a inteligência e levá-lo à desobediência (“… Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” Gên. 3:16). Então, o Homem deu a ela o nome de Eva, que quer dizer “vida” em hebraico, porque ela era a mãe de todos os viventes. (Gên. 3:20) e o Homem passou a se chamar Adão (em hebráico o nome pode ter vários significados desde ‘vermelho’, ‘belo’ ou ‘formoso’).   

Pobres Homem e Mulher apenas queriam ser iguais ao seu criador! O Homem fora criado à imagem e semelhança de Deus, mas não era o próprio Deus, era como uma cópia incompleta, e a Mulher, infeliz, nem mesmo isso era, acabando condenada a ser subjugada e dominada por seu desejo pelo Homem. A vingança de Lúcifer contra a Mulher foi assim completa, mesmo que fosse pelo ódio e não pelo amor a Mulher estaria ligada a ele para sempre, pois assim Deus determinara. Quanto ao Homem, esse não teria descanso e seria escravo do trabalho enquanto vivesse. Sem dúvida quem imaginou essa horrível história era um misógeno, certamente tinha uma aversão doentia à mulher e, o mais inacreditável, foi que essa crença discriminatória contra a mulher perdurou por milênios e ainda perdura.

O mais surpreendente ainda é que a investigação da origem dessa história lendária revela que ela foi modificada, primeiro pelos hebreus e depois pelos romanos, pois em verdade ela se origina da religião suméria, considerada por historiadores como Jean Bottero a mais antiga, apesar de outros reivindicarem que na tradição oral não seria, mas é a primeira sem dúvida nenhuma em documentação escrita, pois foram os sumérios os inventores da escrita.
Na religião suméria a Criação foi uma obra de “deuses e deusas” e a Biblía hebraica considera uma obra de "deuses" também ao usar o nome “Elohim”, a princípio o plural para “Eloh” (“A Elevada” ou “A Deusa”), mais do que o plural de “Eloi” (“O Elevado” ou “O Deus”), assim segundo os hebreus há uma concordância de que foi uma obra de deuses, contudo os romanos por ocasião da sua tradução da Bíblia modificaram para uma obra de “Deus”. 
Entretanto, a religião suméria dá uma abordagem bastante diferente, em que o demiurgo primordial é uma “Deusa” de nome Nammu, um ser feminino e não masculino. Nammu seria a mãe de todos os deuses, cujo símbolo pictórico era um mar primordial de aguás doces, ela teve dois filhos “Anu” (Céu) e “Antu” (Terra), e deles nasceu “Enlil” (o Ar) que separou os pais para sempre, se colocando entre os dois. Anu chorava tanto de saudades de Antu, que Nammu com pena dele recolheu suas lágrimas e deu para Antu (Terra) criando “Enki” ­– o senhor das águas doces portador dos segredos da vida e da morte e de toda mágica, senhor da inteligência e da sabedoria e o senhor do semen (da reprodução dos seres vivos) e era representado por uma “serpente” –,  e sua irmã “Ninhursag”, a deusa Mãe (também chamada pelos sumérios de Mamma ou Mami), senhora da terra, senhora da montanha, a Grande Rainha Sagrada (em sumério Ninmah), senhora dos vivente ou senhora da costela (em sumério Ninti, cuja idéia é associada a Eva hebraica) e foi ela que criou um belo jardim paradísiaco para que os deuses habitassem nele e e o jardim chamava-se Delmun (ou Edinu, de onde derivaria o Eden hebraico).
Ainda segundo a tradição religiosa suméria teria sido na 6ª geração dos deuses, que o deus Enki com a ajuda do deus Enlil teria criado o primeiro Homem a partir do barro criado pela deusa Ninhursag durante a criação do Delmun, tendo como propósito de serem servidos por suas novas criaturas – para que eles dessem conta dos trabalhos pesados – e eles deram a este primeiro ser humano o nome de "Adapa". Como as novas criaturas faziam muito barulho Enlil (deus do Ar) se aborreceu e fez um dilúvio para destruí-las, mas Enki salvou alguns deles e se tornou o "pai, protetor e orientador da humanidade". 
Como se pode notar claramente, ao contrário da tradição judaico-cristã – que demonisou a mulher, culpando-a de todos erros humanos –, os sumérios tinham um profundo respeito e devoção à imagem feminina e atribuem ao homem um certo demando comportamental que pode ser notado nas atitudes da histórias do deus Enki que é dado à infidelidade para com a sua esposa, a deusa Ninhursag, e por conta disso amargou a vingança da deusa, que fez recair sobre ele várias doenças, como forma de restringir seu comportamento inadequado.
Em outro episódio Enki deixa-se levar pelas reclamações de  uma jovem deusa, Inanna, ­a deusa de amor – que hora aparece como filha de Enki e outra como de Anu (Céu), simbolizada pelos sumérios tanto como uma estrela ou como por um leão. A tradição suméria conta que o deus Enki, que sempre gostava de se entreter com Inanna, que era alegre e divertida, um dia foi surpreendido  com a fúria da deusa que reclamava do pouco papel da sua esfera de influência, e para aplacar a furia da deusa o deus decidiu dar a ela todo o seu “Me” – o dom da vida civilizada (a sabedoria das instituições sociais, práticas religiosas, tecnologias e etc), que for a coletado por Enlil (Ar) e dado a Enki para ele ser o guardião do “Me”. A consequência dessa decisão insensata do deus foi que a deusa Enki de posse do “Me” só passou a dar os dons do “Me” àqueles que mais a cultuassem e a honrassem, de modo que ela se tornasse a deusa mais importante para seus adoradores. Eis aí mais uma história que revela como os sumérios consideravam a figura feminina inspiradora e não um obstáculo à realização masculina. Essa essa passagem também elúcida o motivo pelo qual o acesso do ser humano à vida civilizada depende dos seus amores e paixões, e não da sua capacidade intelectual, apresentando uma interpretação suméria do padrão humano de comportamento bem mais próximo à realidade do que uma idealização de como este deveria ser o constante nos documentos da tradição hebraica.     

Contudo, a história da criação do Homem, seja a maneira suméria ou a maneira hebraica, nos mostra que é justamente esse desejo humano de “elevar-se” e tornar-se semelhante a um deus, de ser tal e qual seu ideado criador, que despertou a consciência do ser humano sobre si mesmo. Do momento em que ele tomou conhecimento que não era igual aos outros seres viventes, que estava de alguma maneira acima deles, mas não tão acima assim para ser o Senhor desse mundo, ele passa a viver em busca dessa posição que almeja para si. Em seu íntimo despertou-se o desejo de se fazer o “Deus” do mundo ao qual fora destinado. Em verdade, esse desejo passa a ser a única coisa que dá significado para sua existência, levando-o a conquistar e a transformar incansavelmente o mundo à seu volta, segundo a sua própria vontade e a sua inteligência.

Esta, pode-se dizer, foi a primeira metamorfose do ser humano, quando ele adquiriu consciência de si mesmo e elevou-se de seu estado primitivo de criatura ingênua, ignorante e servil para um estado consciente  de sua individualidade e de sua capacidade de ser senhor de si e livre, mas também não tão livre assim, porque a sua capacidade de “afeição” não lhe fora retirada, e a afeição é como uma corda que amarra o coração ao coração do outro, fazendo com que se sinta o que não se quer sentir de bom e de mau, e que prende pelo bem ou pelo mal, e quem tem afeição em si desconhece o que é ser livre. E, assim o coração humano sermpre estaria ligado ao do seu criador e o de Deus ao dele, e por mais que quisessem se libertar um do outro, sempre estariam unidos. E, em razão única dessa afeição entre o ser humano e Deus e entre Deus e o ser humano, o último passou a lutar para transformar a si mesmo para aproximar a sua própria imagem daquela que faz de Deus, no desejo de libertar-se da condição humilhante e servil que lhe fora imposta. Por sua vez, é o próprio Deus que encarrega-se da orientação do ser humano para que esse objetivo seja alcançado por seu próprio mérito. De modo que a  história da metemorfose humana tem sua continuidade, mesmo que lentamente, mas sem jamais parar.

Assim, a segunda metamorfose humana deveu-se justamente ao povo sumério. Ela teve seu início por volta de 6.000 e 5.000 a.C., quando um povo de origem desconhecida assentou-se ao norte do golfo pérsico, na embocadura dos rios Tigres e Eufrades, e deu ao local o nome de “Ki-en-gi”, que significa Lugar dos Senhores Civilizados, e chamou a si mesmo de “povo da cabeça preta.” Quando esse povo foi invadido pelo povo semita Acádio (sec. III a. C.), originário da região da atual Síria, veio a chamar a esse povo pelo nome de “sumer” (sumério), cujo significado também se desconhece, porquanto que a linguagem usada pelos sumérios não pertence a nenhuma linguística conhecida, sendo esta inteiramente de peculiaridade suméria.

Quanto a questão da origem dos sumérios, em 1927, o arquelogista britânico Sir Leonard Wooley (1880-1960) identificou a cidade de Ur Kasdim (Ur dos Caldeus em hebráico) ­– a qual segundo a tradição dos textos sagrados hebráicos seria a cidade de nascimento do patriarca Abrãao –  com a cidade suméria de Ur. Realmente, provas arqueológicas da presença do povo semita caldeu foram encontradas na região comprovando a presença dos caldeus a partir de 850 a.C., apesar do nascimento de Abrãao ser presumido para 2.000 a.C., muito antes portanto disso. Ocorre que os sumérios no processo de sua civilização, por volta de 3.500 a.C., tiveram um marcante progresso no desenvolvimento agrícola, sendo responsáveis pela invenção do arado para o cultivo de cereais e criaram a cerâmica, disto partiram para grandes obras de engenharia com a construção de grandes edificações para o contrôle e aproveitamento das águas. Os conhecimentos de engenharia permitiram também que os sumérios contruissem de  templos e palácios a residências dando origem às suas cidades-estado com autonomia política e religiosa. Ora, os sumérios em suas obras de engenharia passaram a usar sinais para os cálculos matemáticos, que também passaram a ser empregados para a contabilidade do sofisticado sistema administrativo de seus governos. Em pouco tempo esses sinais usados para contagem numérica evoluiriam para sinais de uma escrita cuneiforme ideográfica – com o uso do símbolo de uma palavra conceito tal como ocorre com o chinês e o japonês –, grafados em tábuas de argila cozidas em forno. Isso permitia que o conhecimento humano antes limitado à tradição oral fosse pela primeira vez registrado e acumulado para que as futuras gerações o pudessem estudar.

Foi em 1872 que foram descobertos registros sumérios que confirmaram a ocorrência de um dilúvio na região, o qual também viria a ser confirmado na narrativa caldéia, ambas em muito assemelhadas a passagem biblíca do dilúvio enfrentado por Noé. Pesquisas do limo depositado nas ruínas de Ur, realizadas em 1950, por Sir Leoard Woolley , confirmaram as evidências desta catástrofe. Entretanto, o arqueólogo P.E. Cleator (Philip Ellaby) em seu livro “The Past in Pieces” (O Passado em Pedaços), publicado em Londres em 1957, arguiu: “A inundação não foi naturalmente, mais que um fenômeno local; contudo para os habitantes do vale Tigre-Eufrates os efeitos se afiguraram, sem dúvida, bastante calamitosos na época.” O que permite considerar que os sumérios era um povo sobrevivente da era pré-diluviana, cujo legado aos povos da era pós-diluviana seria o desenvolvimento da escrita fator determinante da segunda metamorfose humana.

O ser humano do momento que se fez capacitado para fazer registros de seus conhecimentos e legá-los às gerações futuras, também passou a estabelecer leis para a sociedade de forma a torná-la organizada. Assim, quando, em 1901, uma expedição francesa encontrou na cidade de Susa, de origem sumeriana, o famoso Código de Hamurabi ­– um dos primeiros códigos legais da história humana estabelecido pelo rei Hamurabi da Babilônia em 2.334 a.C, cujo mais famoso artigo legal é a lei de Talião (lex talionis) do “olho por olho e dente por dente”–, ficou de uma clareza que não permite constentação a importância da escrita para o desenvolvimento civilizatório da sociedade humana. Apesar disso, e dessa nova capacidade, o acesso a escrita era elitizado, só permitido às castas mais altas da sociedade, enquanto a grande maioria da população permanecia na mais completa ignorância. O conhecimento e a sabedoria eram guardados a sete chaves e só alguns escolhidos poderiam utilizá-lo, contudo seria por conta da afeição humana às coisas materiais e sua tendência nata de comerciar seus interesses, que, como os sumérios através da contabilidade e dos cálculos matemáticos, vários tipos de escrita seriam desenvolvidos, principalmente entre os comerciantes e se alastrariam mesmo entre as camadas mais pobres da populações. Mas, este seria um processo muito lento, porquanto manter a ignorância das massas provava-se útil para aqueles que estavam no poder, de forma a dominá-las e submetê-las.

Por sua vez deveu-se ao Egito a descoberta do papiro, uma espécie de papel primitivo feito de celulose, por volta de 2.500 a.C., o que permitiu pela primeira vez o registro da literatura popular e profana, geralmente composta de um número infinito de poesias, contos e canções e não tão somente registros das atividades religiosas e de documentos administrativos dos governos. Inicialmente a grafia nos longos rolos de papiro se deu com carvão vegetal, mas logo uma mistura de clara de ovo com pigmentos de plantas deu origem a primeira tinta, a qual logo seria mais aperfeiçoada ganhando as cores branco, preto, azul, vermelho, amarelo e verde tendo como liga uma goma, que permitiria a pintura dos afrescos da cidade de Dendera, em 2.000 a.C., dando início à arte da pintura. Com o passar dos anos e séculos o papiro foi sendo aperfeiçoado em vários tipos de qualidade, e apesar de sua fragilidade – susceptível às mudanças climáticas e não sendo muito resistente ao tempo – permaneceu em uso até o século XIX da nossa era.

O primeiro tributo ao acúmulo de conhecimento humano foi feito pelo rei  Nabucodonosor II (632 a.C. – 562 a.C), que mandou construir um acervo ao lado da escola do templo da Babilônia (região também sob influências da civilização suméria), com obras identificadas com cartelas semelhantes as em uso atualmente nos museus. O segundo foi o Templo das Musas (Museum) construído por Ptolomeu II Filadelfo (309 a.C. – 246 a. C.), sucessor do imperador macedônio Alexandre Magno, na cidade que este ergueu no Egito para estabelecer a sua corte, Alexandria.  O Templo das Musas, tornou-se mais conhecido como a Biblioteca da Alexandria que chegou a abrigar um acervo magnífico de obras da Antigidade, já que a proposta era reunir toda a documentação registrada da sabedoria humana e principalmente a da cultura helenica. Infelizmente, o grande general romano Julio Cesar, em seu desejo ardente por Cleópatra e pela conquista do Egito, por “acidente” incendiou a Biblioteca da Alexandria, em 48 a.C., e esta foi sem dúvida uma das grandiosas perdas dos arquivos de sabedoria da humanidade e outras maiores ainda viriam depois.

O "Tablet" Egípcio
Apesar disso, os romanos deram uma contribuição muito curiosa aos utensilíos usados para a escrita. Podemos atribuir aos romanos o uso “prático” da escrita na vida cotidiana e a disseminação da alfabetização e do uso da língua latina como elemento de homogenização do vasto Império Romano. Foi deles a invenção do “tábua de cera”, consistia numa tábua de madeira com um recipiente retangular onde se derramava a cera de abelha derretida, esperava secar e depois escrevia-se nela com um “stilus” um pedaço de pau apontado ou um pauzinho de metal pontiagudo. A tábua de cera servia para fazer contas, anotações, listas, mandar recados, anotar lembretes ou mandar ordens para as legiões durante as batalhas, depois de lido o texto a cera era derretida novamente e recolocada na tábua para ser novamente utilizada.

Como é possível observar na figura de um romano usando o seu “wax tablet”, quase temos a impressão que ele poderia estar usando um computador pessoal, hoje vemos tantas pessoas em qualquer lugar sentadas dessa mesma maneira fazendo a mesma coisa só que uma instrumentação de idéia semelhante mas tão distante, não só em tecnologia como em conhecimento. Contudo, em seu tempo os “wax tablets” era uma tecnologia tão desejada quanto estão sendo agora a nossa mania pelos nossos ultramodernos “tablets”! Porém, eles eram os humanos da segunda metamorfose e eles eram como  pioneiros lutando loucamente para romper com a ignorância da humanidade, quanto a nós, pode-se dizer que somos os herdeiros de suas conquistas.

Sem dúvida, os romanos pareciam ter conseguido conquistar o topo do mundo, mas como se diz quanto mais alto, maior queda. E o Império que parecia invencível se fez em pedaços de história quando as hordas bárbaras chegaram como  enxames de gafanhotos e começaram a destruir tudo o que viam pela frente. E para onde foram os inúmeros rolos de papiro que continham os conhecimentos conquistados tão duramente por gerações e gerações de seres humanos tão empenhados em se elevarem como deuses sobre a Terra? Para dentro das cavernas, mosteiros, castelos e fortificações; escondidos, trancados e desaparecidos, totalmente inalcançáveis e novamente a ignorância foi a grande vitoriosa e dividiu o mundo para melhor governar. 


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